Trabalho forçado: três operários são libertados de obra pública em SP

O sonho de “ganhar a vida” trabalhando na maior cidade do país virou pesadelo para três jovens maranhenses. Eles foram libertados de condições análogas à escravidão de uma obra de moradia popular do Governo do Estado de São Paulo em plena região central da capital.

“Fiquei com medo de virar mendigo em São Paulo”, confidenciou Jonas*, 21 anos, à Repórter Brasil. Atraído pelas promessas de um “gato” (aliciador de mão de obra) que acenou com salários superiores a R$ 800 mensais no aquecido mercado da construção civil, o operário convidou outros dois amigos do município de Colinas (MA) a embarcar rumo à empreitada.

Para chegar até a metrópole, Jonas teve de emprestar dinheiro de familiares. Ele e seus dois amigos decidiram se arriscar na longa viagem de transporte clandestino de Presidente Dutra (MA) – município de onde partem muitos ônibus levando gente para trabalhar em diversas regiões do Brasil – até o Terminal Rodoviário Princesa Isabel, ainda no início de abril.

A realidade encontrada no canteiro de obras foi bem diferente das expectativas. Depois de um mês na lida, recebeu apenas R$ 340 em maio. Mesmo assim, continuou a trabalhar por mais um mês e meio na esperança de que as coisas mudassem, mas nenhum outro pagamento foi feito.

“[Eu] não podia comprar uma pasta de dente, um sabonete. Como ia ficar vivendo aqui nesta cidade? Não tinha como ir embora, nem sair, nem nada”, desabafou Jonas. Diante da situação, ele e seus amigos foram buscar direitos junto à representação do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) na cidade de São Paulo (SP). “Fiz isso porque não tinha como voltar pra minha casa. Não tinha dinheiro nenhum, mesmo trabalhando duro”.

Detectado o aliciamento ilegal e constatada a impossibilidade de ir e vir pela ausência de pagamento de salários, os três foram libertados pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE-SP). Eles atuavam como subcontratados da Construtora Coccaro, responsável pela obra do Conjunto Habitacional Bela Vista – na Rua Conde de São Joaquim – da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), órgão do governo estadual paulista. O empreendimento tem suporte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) federal.

“A gente não aguentava mais reclamar para o chefe de obra e para o pessoal do administrativo da Coccaro, que não faziam nada”, contou Jonas. Da supervisão, eles ouviam apenas que era preciso ter tranquilidade, pois caso realmente houvesse problema na hora de receber pelo serviço prestado por meio da terceirizada, “a Coccaro pagaria”. Jonas e os colegas chegaram até a paralisar o que estavam fazendo por duas vezes, mas acabaram sendo convencidos a retornar ao trabalho. Diante da crescente aflição, ele antecipou inclusive que poderia ir ao MTE, mas ninguém acreditou.

Quando a fiscalização da SRTE/SP chegou ao local, encontrou 24 trabalhadores. Eles atuavam por sete “empresas” terceirizadas prestadoras de serviços. Uma delas era a Vale Navegantes Empreiteira Ltda., que tem como sócio-administrador Fabiano Oliveira de Amorim. Depois de ter aliciado Jonas e seus colegas, Fabiano sumiu sem dar explicações.

Durante as apurações, descobriu-se que o “sócio-administrador” atuava, de fato, como “gato” e até falsificou o registro em carteira de Jonas na documentação encaminhada à Coccaro para prestar contas, como explica Giuliana Cassiano, do Grupo de Erradicação do Trabalho Escravo Urbano da SRTE/SP. A fiscalização foi acompanhada por representantes do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil de São Paulo (Sintracon-SP).

Real empregador

A terceirização acabou precarizando a relação de trabalho, avaliam os membros da SRTE/SP que atuaram no caso. A Vale Navegantes, subcontratada pela Coccaro, não dispunha de idoneidade econômica para prover a quitação dos salários, benefícios, tributos e contribuições sociais, bem como obrigações referentes à segurança e saúde, advindos da contratação de trabalhadores, explicitou o auditor fiscal Luís Alexandre Faria.

O relatório de fiscalização frisa que a terceirizada não possui “capacitação técnica” para fornecer, de forma autônoma, os serviços para a qual foi contratada. A subcontratada, conforme o mesmo documento, prestou única e exclusivamente para “colocar trabalhadores à disposição de outra empresa, ou seja, locar mão de obra, disfarçando e encobrindo o verdadeiro empregador, mediante simulação de contrato de prestação de serviços”.

Várias irregularidades relacionadas ao meio ambiente de trabalho foram encontradas na visita à obra. A área de vivência e os alojamentos foram interditados porque estavam em condições irregulares. A fiscalização apontou ainda oito quesitos graves de risco à saúde e segurança que foram descumpridos pela empresa. As instalações elétricas eram irregulares e os fios ficavam expostos. No total, foram lavrados 11 autos de infração pelas irregularidades encontradas.

De acordo com Claudinei Faleiros, gestor da obra no Conjunto Habitacional Bela Vista, situado no bairro de mesmo nome, a Coccaro recebeu com surpresa a denúncia de aliciamento e trabalho escravo. “Estamos há 20 anos no mercado e nunca passamos por isso”, declarou. O engenheiro explicou que a empresa atendeu prontamente à SRTE/SP e ao sindicato da categoria para regularizar a situação e pagar os trabalhadores. “Nós somos solidários. Os problemas que estes trabalhadores relataram não chegaram até mim. Se tivessem chegado, teríamos resolvido”, adicionou Claudinei. Para a fiscalização, contudo, as presenças de um técnico de segurança designado e do engenheiro civil responsável pela construção dos apartamentos demonstram claramente “que a empresa sabia dos problemas”.

O gestor da obra disse ainda que a Coccaro exige das terceirizadas a comprovação do registro na Carteira de Trabalho e da Previdência Social (CTPS) e do recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), como forma de evitar “problemas”. “Já estamos mudando em relação às terceirizadas. Buscamos agora contratar os trabalhadores diretamente e só terceirizar a parte de instalação, por exemplo”, explicou.

Os três resgatados receberam R$ 5,7 mil cada e retornaram para o Maranhão no último dia 19 de julho, com as despesas pagas pela Coccaro.

Reações ao flagrante

A Corregedoria Geral da Administração do Estado de São Paulo instaurou processo correcional (Processo CGA-SH nº 136/2011) para apurar as denúncias de utilização de mão de obra aliciada por meio de tráfico de pessoas. O processo foi provocado por um ofício enviado pela Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, por meio do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, à Secretaria da Habitação.

Em nota enviada à Repórter Brasil, a Secretaria da Habitação garantiu que a CDHU realiza, por meio de sua “fiscalizadora”, observação in loco das condições oferecidas pelas empreiteiras aos seus trabalhadores. Essa observação, reforça, inclui “as relações trabalhistas e de segurança individual e coletiva”. “Todos os eventos em desacordo com os procedimentos legais”, informou o órgão, “são registrados em livro de ocorrências, sendo exigido o pronto atendimento à legislação por parte das contratadas”.

Com relação ao empreendimento Bela Vista, a secretaria sustentou que, após o recebimento da denúncia em 15 de julho, a CDHU e o MTE realizaram uma fiscalização no local. “Foram feitas análises das condições de trabalho e da documentação apresentada e não se constatou irregularidades no canteiro de obras”, discorreu o órgão que, sem demonstrar qualquer constrangimento, cravou a “informação” completamente equivocada de que o “Ministério do Trabalho deu por encerrado o processo”.

Na realidade, auditores fiscais do MTE realizaram a ação em 12 de julho, antes da data citada pela CDHU, e finalizaram a fiscalização em 29 de julho, após pagamento e retorno dos trabalhadores e lavratura dos autos de infração pelas irregularidades constatadas. O flagrante pode ensejar inclusive a futura inclusão da Coccaro na “lista suja” do trabalho escravo.

Casarão precário

Jonas chegou a trabalhar, juntamente com outros operários de Colinas (MA), na fase anterior da mesma obra entre junho a dezembro de 2010. Quando chegou pela primeira vez, o frio era intenso e ele não tinha nada para se cobrir. “Um colega de alojamento me emprestou um cobertor rasgado”.

Durante a primeira passagem, mais de 20 pessoas (incluindo Jonas) ficaram instaladas em um casarão sem nenhuma condição de abrigar trabalhadores (fotos ao lado), que será demolido em breve. A condição era degradante: não havia água potável e o ambiente era mal conservado, sujo e perigoso.

Na ocasião, a despeito do quadro lamentável de alojamento e das jornadas extenuantes de trabalho, ele recebeu cerca de R$ 700 mensais – o que acabou sendo um incentivo para que voltasse neste ano novamente. Já na primeira vez, não recebeu todos os direitos trabalhistas que lhe eram devidos.

As condições degradantes de alojamento e a jornada exaustiva que tiveram de enfrentar no ano passado poderiam caracterizar o trabalho análogo à escravidão, coloca a auditora fiscal Giuliana. “Os empregados trabalharam durante todos os feriados de 2010. Em outubro, por exemplo, trabalharam de domingo à domingo sem folga”, sublinha. Testemunhos à parte, para que haja libertações completas, é preciso que haja flagrante.

Antes de vir para a capital paulista, Jonas já tinha encarado outras empreitadas como migrante, assim como muitos de seus conterrâneos. “Já fui cortar cana no Mato Grosso e asfaltar estrada em Goiás”, contou. “Minha vontade é de trabalhar em Colinas (MA) mesmo. Não ter mais que ficar viajando, nessa incerteza”.

Problemas anteriores

A autuada Coccaro faz parte do grupo da construtora Faleiros, que já teve problemas recentes em outro canteiro de obras no interior paulista. Centenas de trabalhadores foram encontrados em condição degradante em Hortolândia (SP), mais especificamente na construção de 500 apartamentos residenciais com recursos da Caixa Econômica Federal. De acordo com a Procuradoria do Trabalho da 15ª Região (PRT-15), a Faleiros, responsável pela obra, subcontratou os serviços da construtora Itajaí, que acabou autuada.

Cerca de 250 pessoas foram alojadas em um espaço com estrutura para acomodar, no máximo, 150 operários. A obra foi embargada parcialmente por problemas de segurança, como risco de queda em andaimes e instalações elétricas irregulares. O flagrante ocorreu em maio.

Em 2009, a própria Coccaro assinou, por conta de outras irregularidades, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a Procuradoria Regional do Trabalho da 2ª Região (PRT-2) assumindo obrigações relacionadas ao meio ambiente de trabalho, de acordo com a procuradora Danielle Leite, em cumprimento à Norma Regulamentadora (NR) 18.

A procuradora promoveu diligência no último dia 18 de julho para verificar o cumprimento do TAC e encontrou uma série de irregularidades na própria obra do Conjunto Habitacional Bela Vista, da CDHU. “Até o momento, a empresa arcou com o valor de R$ 50 mil a título de compensação pelo descumprimento de cláusulas do TAC”, explica Danielle.

Por: Repórter Brasil

Autor: Salvador Neto

Jornalista e escritor. Criador e Editor do Palavra Livre, co-fundador da Associação das Letras com sede no Brasil na cidade de Joinville (SC). Foi criador e apresentador de programas de TV e Rádio como Xeque Mate, Hora do Trabalhador entre outros trabalhos na área. Tem mais de 30 anos de experiência nas áreas de jornalismo, comunicação, marketing e planejamento. É autor dos livros Na Teia da Mídia (2011) e Gente Nossa (2014). Tem vários textos publicados em antologias da Associação Confraria das Letras, onde foi diretor de comunicação.

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