A Copa do Mundo de 2014 a ser realizada no Brasil é um megaevento esportivo, mas muito mais comercial e mercadológico do que esportivo. Por trás do pão e circo se escondem abusos diversos contra populações, leis e muito mais. Confira essa grande reportagem publicada no site da Pública, Agência de Reportagem Investigativa:
“O Rio de Janeiro é uma das cidades onde as obras para a Copa mais estão removendo pessoas de suas casas em todo o país. A estimativa é que o governo gastará cerca de um bilhão de reais com desapropriações até 2014 só para implantar os chamados BRT’s (Bus Rapid Transit) – transporte previsto no projeto de mobilidade urbana para os megaeventos.
O Rio também é a única cidade entre as escolhidas para sediar os jogos que já tem uma lei desde 2009 que proíbe camelôs em um raio de 2 quilômetros dos estádios.
A capital é pauta de um dossiê exclusivo feito pelo Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro e lançado nesta quinta-feira (19) em um debate com a presença de Raquel Rolnik no Rio, de forma simultânea com a Pública. O documento reúne denúncias de violações de direitos humanos nos preparativos para a Copa e ainda para as Olimpíadas de 2016.
O dossiê Megaeventos e violações dos direitos humanos no Rio de Janeiro, que você pode ler na íntegra aqui, foi produzido coletivamente por entidades e movimentos sociais que compõem o Comitê Popular local e traz dados sobre remoções, gastos públicos, análises sobre a falta de informação e participação dos mais afetados nos projetos de mobilidade e urbanização.
Faz ainda denúncias graves sobre a transferência de terras públicas para o setor privado através de parcerias público-privadas e sobre condições precárias de trabalho nas obras da Copa como a reforma do Maracanã, que já enfrentou duas paralisações.
Moradia
O documento aponta que comunidades carentes têm sido expulsas de áreas valorizadas pela especulação imobiliária ou por serem pontos turísticos: “a maioria das remoções está localizada em áreas de extrema valorização imobiliária, como Barra da Tijuca, Recreio, Jacarepaguá e Vargem Grande”. E explica que a maioria dos conjuntos habitacionais produzidos pelo programa Minha Casa Minha Vida – uma das alternativas do governo para as famílias removidas de suas casas – não está nas áreas beneficiadas com investimentos para a Copa e as Olimpíadas, e sim nas áreas periféricas da cidade, onde há baixa cobertura dos serviços públicos e infraestrutura urbana.
“Em alguns casos, a ausência ou precarização dos serviços públicos será provocada pelo recebimento de um contingente enorme de pessoas sem a correspondente ampliação dos serviços”.
Como o Copa Pública mostrou aqui e aqui, algumas formas de desapropriação têm sido arbitrárias. Segundo o dossiê, os moradores não são citados nos processos de expulsão por não constarem no Registro Geral de Imóveis, mesmo que tenham mais de 5 anos de ocupação sem contestação da posse – o que daria direito ao usucapião ou concessão de uso para fins de moradia.
O dossiê aponta que essas ações permitem “a demolição das casas sem escutar os moradores afetados” e violam “o princípio da precaução nas ações de despejo, reintegrações de posse e desapropriações que envolvam comunidades pobres e grupos vulneráveis”.
O documento fala ainda em remoções à noite, ameaças e até violência policial como procedimentos adotados pelas sub-prefeituras e a derrubada de casas sem avaliação de impacto para as demais.
Um exemplo dado no texto é a remoção que aconteceu no bairro Campinho, na zona norte do Rio, onde famílias tiveram suas casas derrubadas antes de receber indenização. Em outros casos, as denúncias são de indenizações baixas tanto para moradores como para comerciantes: “Relatos de comerciantes da Restinga, localizada no Recreio dos Bandeirantes, afirmam que a Prefeitura Municipal estava oferecendo R$ 14.400,00 e em Campinho, R$ 20.000,00. No caso da Comunidade do Metrô Mangueira, a situação é ainda pior, pois os moradores denunciam que os comerciantes da localidade não estão sendo indenizados” diz o documento.
Mobilidade
O Rio deve receber três grandes eventos nos próximos anos: A Conferência Rio+20, a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016. Um conjunto de intervenções nos transportes está previsto, com o nome de “Revolução nos Transportes16”. Inclui a implantação dos Bus Rapid Transit (ônibus em faixa exclusiva) e o alongamento da Linha 1 do metrô. Segundo o dossiê, porém, estas obras não irão atender à demanda que já existe porque vão se concentrar nos locais dos megaeventos:
“Primeiro, há uma forte concentração no município do Rio de Janeiro, lembrando que a região metropolitana tem 20 municípios. E, em segundo lugar, há uma desigualdade na distribuição desses investimentos no interior do município do Rio de Janeiro, com uma concentração maciça na Zona Sul e na Barra da Tijuca”, explica o documento.
Trabalho
O dossiê coloca as pressões exercidas pela FIFA e pelo COI como as principais responsáveis pela precarização do trabalho nas obras da Copa e pelas violações dos direitos dos trabalhadores que se tem visto por todo o país –Relembre o caso da Arena Amazônia
No caso específico da reforma do Maracanã, duas paralisações já aconteceram. A primeira relacionada à explosão de um barril que armazenava produtos químicos que feriu gravemente um operário. Na ocasião, os dois mil trabalhadores entraram em greve denunciando os baixos salários e as condições precárias de trabalho, reivindicando convênio médico e adicional de periculosidade. A segunda paralisação se deu por conta do descumprimento do acordo: “Os trabalhadores afirmaram que permaneciam sem plano de saúde, sem aumento no valor das cestas básicas e sem registro das horas extras no contracheque. Além disso, a insalubridade no canteiro de obras persistiu e, ao contrário do que previa o acordo anterior, houve uma queda de qualidade nas condições de trabalho”.
Trabalhadores informais
No que diz respeito à relação com os camelôs e trabalhadores informais – leia a matéria especial da Pública sobre as zonas de exclusão da FIFA – o documento aponta que a política de preparação da cidade é de militarização.
“Foram construídas duas UOPs (Unidade de Ordem Pública), quartéis da Guarda Municipal, na Central e no Maracanã. A Prefeitura Municipal aprovou na Câmara dos Vereadores uma legislação, em 2009, que proíbe qualquer camelô de trabalhar em um raio de 2 quilômetros dos estádios, hospedagem dos atletas e eventos relacionados”.
Esporte
O dossiê faz uma análise do que chama de “processo de elitização do futebol brasileiro”. Nesta tabela, mostra o aumento do valor dos ingressos e coloca que o Brasil segue sendo um país exportador de craques e que tem sido a maior fonte de renda dos clubes: “Exportam-se os jovens craques para serem refinados no exterior e compram-se os mesmos jogadores mais caros de volta, principalmente quando estes estão no fim de carreira”.
Ainda sobre o Maracanã, o dossiê coloca que ele já ficou mais tempo parado do que em atividade e que a reforma atual já está orçada em quase R$1 bilhão. “A previsão de abertura do estádio está para janeiro de 2013, quase 27 meses parado. Somando recursos de duas obras que aconteceram lá, são quase R$1,5 bilhão de dinheiro público investido em um estádio que não recebeu um jogo sequer durante quatro dos últimos oito anos”.
Segurança
“O investimento público em segurança pelos megaeventos pode ser considerado um experimento no monitoramento de pessoas e lugares. No caso do Rio de Janeiro, a segurança pública relacionada aos megaeventos está voltada para os interesses do mercado e terá o efeito de marginalizar ainda mais camadas sociais mais vulneráveis” denuncia o documento. E aponta que o investimento em UPPs representa o maior do Estado em segurança pública: “Só em 2014, o investimento será de R$ 720 milhões, prevendo um efetivo de 12 mil policiais. Não é por acaso que quase todas as primeiras 18 UPPs foram instaladas em favelas existentes nas regiões mais nobres da cidade, formando um ‘cinturão’ associado explicitamente às áreas das competições Olímpicas, aos sistemas de transporte que os entrelaçam e aos centros de maior poder aquisitivo”.
Orçamento e finanças
Em relação à Copa do Mundo, estão previstos pouco mais de R$ 4,1 bilhões entre financiamentos e investimentos, sendo mais de R$ 2,8 bilhões oriundos do governo federal. O dossiê lembra que o Banco Nacional para o Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES, é a principal instituição de financiamento na capital. “ O Rio de Janeiro é a segunda cidade onde mais devem ser investidos recursos públicos, só sendo superada por São Paulo (onde estão previstos investimentos de R$ 5.145,15 bilhões)” e que a maior fatia deste bolo deve ir para mobilidade urbana, que representa 44,9% do total de investimentos previstos para a Copa e 59,6% para as Olimpíadas.
“Do restante dos investimentos para a Copa, 26,9% estão alocados na ampliação ou reforma da infraestrutura dos aeroportos e portos, e outros 21,1% na reforma do Maracanã”. Os investimentos previstos se concentram em áreas nobres da cidade, como a Barra da Tijuca e o Centro do Rio de Janeiro: “Percebe-se que o grande legado são os lucros apropriados por certos agentes econômicos que têm a cidade como o seu negócio”.
Outra denúncia importante diz respeito à transferência de recursos públicos para agentes privados na contratação de grandes obras ou em parcerias. “No caso do Maracanã, que está sendo reformado com recursos públicos, o governo do Estado do Rio de Janeiro anunciou a intenção de entregar sua gestão para um concessionário privado, já em fevereiro de 2013, na inauguração das obras para a Copa do Mundo em 2014. Conforme noticiou o jornal Brasil Econômico (27/10/2011), o bilionário Eike Batista, controlador do grupo EBX e oitavo homem mais rico do mundo -, admitiu interesse em participar do processo de privatização e da gestão do estádio Maracanã, como é popularmente conhecido o oficialmente estádio Mário Filho”.
Porto Maravilha
No caso do projeto revitalização da área portuária, o projeto Porto Maravilha , a parceria público-privada está ocorrendo por meio de uma operação urbana consorciada e da emissão de Certificados de Potencial Adicional de Construção-CEPAC. Pela lei aprovada, as empresas interessadas em construir na área portuária teriam de adquirir os certificados (em torno de seis milhões, cada um no valor mínimo de R$ 400), comercializados como títulos imobiliários negociados em leilões públicos supervisionados pela Comissão de Valores Mobiliários.
Ao todo, a operação urbana consorciada envolve uma área de quatro milhões de metros quadrados, que vai dos bairros da Gamboa, Saúde, São Cristóvão, Caju, Santo Cristo e Cidade Nova à Região da Leopoldina.
No entanto, no leilão realizado em 2010 para promover a primeira operação urbana consorciada do Rio (e a maior parceria público privada do Brasil, conforme o prefeito Eduardo Paes), a iniciativa privada não comprou nenhum título. O Fundo de Investimento Imobiliário Porto Maravilha, controlado pela Caixa Econômica Federal, comprou todos os CEPACS com recursos do FGTS.
Posteriormente, em 2011, seria estabelecida a parceria entre o Fundo de Investimento Imobiliário Porto Maravilha, gerido pela CAIXA, e a empresa Tishman Speyer, uma das maiores do mundo no ramo, para o desenvolvimento de um empreendimento imobiliário comercial na região do porto. O empreendimento prevê a construção de um conjunto de torres comerciais de alto padrão.
Participação popular
No que diz respeito à participação popular nas decisões e no acompanhamento dos projetos para os megaeventos, o documento esmiúça o organograma das entidades responsáveis e mostra que há pouco espaço para que a voz da população seja ouvida. Quando há a participação de alguma entidade civil, é apenas formal. É o caso do “Conselho de Legado”, uma entidade consultiva que reúne apenas quatro entidades: a Associação Comercial do Rio de Janeiro, Instituto dos Arquitetos do Brasil, Associação dos Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário, ONG Rio Como Vamos. No total, entre entidades deliberativas, executivas e consultivas, são nove órgãos coordenando os megaeventos.
A ausência de diálogo e transparência com a população é evidente nos casos de remoção de habitações populares. Nas favelas da Vila Harmonia, Recreio II, Restinga, Sambódromo, Campinho e Metrô-mangueira os aviso de datas de remoção foram feitos horas antes da ação.
Também não há clareza na justificativa da remoção. As comunidades são situadas nas proximidades de intervenções que constam como “projetos olímpicos”, mas as explicações oficiais são mudadas constantemente. No vaso da Vila Autódromo, por exemplo, não se sabe se a remoção que ameaça acontecer é pela construção do Parque Olímpico, pela necessidade de ampliar corredores viários no local, por ocupar áreas de risco (segundo o dossiê, a favela é situada em lugar plano e não há registro de enchentes no local) ou por ser uma área de preservação ambiental.
Propostas do Comitê Popular
O Comitê Popular Rio defende que os direitos humanos básicos, como moradia, educação e saúde, “não podem ser comprometidos em nome dos megaeventos esportivos”. Eles acreditam que “as decisões sobre projetos e obras a serem realizados na cidade, envolvendo recursos públicos, ou mudanças das normas e marcos legais, sejam definidas considerando as necessidades e prioridades da população”. Ou seja, os “investimentos públicos na cidade devem promover o Direito à Cidade, e não sua elitização e mercantilização”. Também reivindicam o “direito ao acesso e utilização dos espaços públicos pela população para a prática de atividades culturais e tradicionais como manifestações públicas e comércio popular”.
*Colaborou Jéssica Mota