Durante mais de uma semana, o repórter deixava a redação e ia para o local onde funcionava a Escola Base. Entrevistou os principais personagens envolvidos numa história que horrorizou o país na década de 1990. Na época, profissional do Diário Popular, o jornalista escreveu, evidentemente, mas não publicou sequer uma linha sobre o assunto. Após 20 anos, o Comunique-se foi em busca de Antônio Carlos Silveira para descobrir como ele fez para não cair no erro que marcou a história da imprensa brasileira. “No próprio jornal, fomos (o jornalista e a direção) criticados por ter ‘perdido o furo'”.
Após a denúncia da mãe de um dos alunos da escola infantil, Silveira foi o primeiro jornalista a saber do caso. Era comum, segundo ele, conseguir informações exclusivas na época. “O delegado que ouviu a denúncia se sentia em ‘débito’ comigo por causa da apuração de outra reportagem. Acredito que, por isso, ele me ligou. Consegui chegar ao local antes de todos e daria a matéria sozinho”. Foi ao conversar com o dono da escola, Icushiro Shimada, que Silveira desconfiou. “Quem é acusado de um crime desses não dá entrevista. A pessoa foge, coloca o advogado na frente, mas não fala. Shimada me recebeu junto de sua esposa, abriu a escola, contou como era o trabalho e disse que era absurda a acusação”.
Denúncia
O Diário Popular tinha excelente equipe de reportagem policial. Quando recebi a denúncia, fui para o local. Falei com diversos personagens, com o delegado, as pessoas que estavam lá, os donos da escola. Na rua, os grupos se formavam com pessoas que acusavam e outras que defendiam os educadores. Lá mesmo pude ouvir gente falando que tudo não passava de invenção das crianças. Toquei a campainha do colégio, pedi para entrar e os donos me receberam bem. Quem é acusado de um crime desses não dá entrevista. A pessoa foge, coloca o advogado na frente, mas não fala. Shimada me recebeu junto de sua esposa, abriu a escola, contou como era o trabalho e disse que era absurda a acusação.
Não publicaremos!
Naquela época, quem comandava a redação era o Jorge Miranda Jordão. Ele tinha uma filosofia de vida e não gostava de publicar matérias sobre suicídio – por acreditar que poderia incentivar outras pessoas – e sobre violência contra a criança. Toda vez que a pauta tinha esses dois ganchos, a redação já ficava atenta. Mas, claro, o caso da Escola Base era diferente, tinha muito apelo social e por isso fui cobrir. Quando voltei à redação, conversei com os diretores e editores. Eles me perguntaram qual era a matéria e eu disse que a situação era muito complicada pois não havia nenhum tipo de prova de que as crianças teriam sido vítimas de abuso sexual. Tinha gente dizendo que era verdade e gente dizendo que era mentira. Era apenas isso que tínhamos. Os diretores foram conversar e eu escrevi a matéria contando o caso. Era um texto de quase 40 linhas explicando todos os pontos e deixando claro que, embora tivesse o boletim de ocorrência, não havia prova. A decisão de não publicar foi do diretor, mas eu tinha, como repórter, a obrigação de escrever, mesmo sabendo que estava tudo muito estranho. Deixei nas mãos do Miranda e, no dia seguinte, quando olhei o jornal, percebi que não tinha saído. Fiquei tranquilo. Parte da redação do Diário dizia que tinha sido uma boa atitude, outra criticava muito por ter perdido a chance de dar “furo sensacional”. Naquele momento não era possível mensurar se estávamos certos ou errados. Tínhamos fotos, informações exclusivas e detalhes, mas não demos. A única coisa que publicamos sobre o assunto foi uma carta de um leitor dizendo que o impresso era vendido e por isso não falou sobre o assunto. As coisas ficaram graves, destruíram a escola e eu acompanhei tudo ‘n loco, deixei matérias prontas sobre tudo que presenciei. Mas o Miranda afirmou que não fazia sentido publicar e manteve a decisão. Quando se tem um cargo como o dele, é difícil avaliar se as atitudes são corretas. É complicado, a direção mesmo se questionou sobre isso. O Miranda acertou, sobretudo, por seu posicionamento de não gostar de pautas com violência contra crianças.
Todos no mesmo barco
A história era muito boa. Tudo começa com o repórter. Quando ele tem contato com algo de tal gravidade ele quer falar, fazer a reportagem, publicar antes da concorrência, considerando que na década de 1990 as redações tinham grandes repórteres policiais, como Percival de Souza. Hoje, ninguém consegue dar furo, a internet é muito rápida. Mas antes, embora tivesse essa disputa, era possível. Neste caso, as matérias da época eram desproporcionais. A acusação tinha muito mais espaço do que a defesa. Mas, isso não é algo muito claro para o repórter, que está sujeito a uma série de coisas, como influências por parte dos chefes, das fontes e mesmo pelo desejo de ser reconhecido por ter coberto um grande caso. Isso é bastante complexo
Erramos?
A imprensa não reconhece seus erros. Quando os repórteres começaram a perceber que havia algo de estranho, que aquilo era mentira, os veículos fingiram que nada tinha acontecido e passaram a dar matérias ressaltando o outro lado, que era o da defesa. A imprensa conserta na surdina e não faz mea culpa. Ainda hoje é assim! As empresas de comunicação detonam as pessoas e quando percebem que erraram apenas ficam quietas. Temos casos recentes que fizeram isso. Existe temor grande na imprensa, atualmente, pois muitos jornalistas com bagagem estão afastados, trabalhando em assessoria. Os novatos que estão no mercado estão carentes de referência, fazem jornalismo na raça, com equipes reduzidas. Hoje, o Diário de S. Paulo, que era o antigo Diário Popular, não consegue se consertar, não está mais entre os grandes e quem era da equipe de polícia na época já não existe mais. Se você olhar para o Estadão, tem repórter da década de 1990 lá!
Qual foi o aprendizado?
O fato de o Diário não ter cometido o erro de publicar o caso Escola Base não me fez mais, nem menos, repórter. O jornalista ganha muito reconhecimento com o furo, mas nunca é reconhecido pela matéria que não fez. Se eu tivesse publicado e fosse um furo histórico, talvez eu tivesse sido contratado por uma grande redação para ganhar um salário melhor. Mas, no final, não me trouxe nenhum ganho. Trabalhei por 11 anos no jornal, fui demitido com a desculpa de que meu salário era muito alto. A opção que eu tinha para pagar as contas era trabalhar com assessoria, área em que atuo até hoje. Pensei em voltar para a redação, mas trabalhar na imprensa requer pensar muito bem no que vão te oferecer!
Fonte: Comunique-se.