Ele contava que naquele inverno chegou mais perto dela do que nunca. Durante muitos anos à assediava a mandar mensagens e sinais. O ardor a que se tinha entregado não o deixava pensar em mais nada. Nem o nascer do sol que o encantava desde menino já não o interessava. Dóca havia se perdido no vale frio e úmido da apatia e solidão. Os amigos o perderam de vista ao longo dos anos, e ele os negava porque não sentia mais vontade de estar ao lado destes felizes, dizia ele. Era um caso sem solução à vista, um caminho que o carregava a um precipício. Mas ele não ouvia os gritos, preferia a presença dela a cercá-lo de sedução.
Na verdade, ele andou por léguas a esconder seus sentimentos. Desde menino queria o amor. Desejava o amor. Ele era puro amor a ponto de se dar de todo. Aos poucos a desesperança o assolava, e ele trocava o receber algum carinho por dar todo o seu calor a alguém. Trocou o desejo de ser amado por se doar inteiro a mulheres, depois esposa e filhos. Três homens belos que os acontecimentos de uma vida louca e traiçoeira se fizeram afastar dele. Assim, se tornou solitário. As garrafas eram companhias perfeitas. As horas passavam, a vida se arrastava e Doca sentia que ela estava a um toque.
Ele recusava-se a ser um marginal. Queria ser grande, acreditava nas pessoas. Eu mesmo o vi tantas vezes gastar seu ouvido a acolher as lamurias de outros. Nunca falou de si. Dóca queria o amor, mas o desencontro entre ambos o adoecia. A alma de menino o fazia leve, e ela, a quem já admirava, o enlaçava como uma cobra à espreita. E assim foi descendo ao centro da terra das desilusões. Ao se aproximar perigosamente, eis que surge a fêmea prometida! Um ser luminoso e quente, a mulher que a um olhar o puxou para o ar puro.
Dóca então retomou o viço, a força, o caminho que o levava para as planícies e planaltos do amor. Mergulhou no mar das emoções perdidas, e se refrescou, e amou como se não existisse amanhã. Novos sonhos nasceram, quem sabe novas conquistas a realizar. E foi-se o nosso menino a se entregar. Mas então do nada ela, chamava-se De Pression, sorrateiramente reaproximou dele. Foi com mestria que criou fissuras, trouxe tempestades, furacões e trovões à vida de meu amigo. Lentamente ele largou as mãos da esperança e voltou a descer nas profundezas da dor irracional. E só parou ao sentir seu corpo físico fraquejar, derrotado.
Naquele duro dia ele literalmente desabou. Na cama, a perder a fala, enrolar a língua. A não mexer braços e pernas, paralisado a pensar, o que eu fiz? A partir de então Dóca foi cumprir o seu calvário. Acamado pelo AVC, ora aqui, ora acola, caiu em mãos duras, mas poderosas, a dar-lhe todo o amor que pediu a Deus. De leito em leito foi viver a dor que procurou a vida inteira. Aqueles homens e mulheres que lhe trocavam, banhavam, ensinavam-lhe a sentar, mexer seus dedos, mãos, braços, eram como anjos a compor o novo homem que renascia ali. A dor suprema que tanto buscou o faria se tornar um novo homem.
Ele se exalta ao contar-me, pela enésima vez, dos treinos de fisioterapia, como o limpavam, de como reaprendeu a pegar em talheres e se alimentar sozinho. E chorou ao rever-se de pé, depois equilibrado e dando pequenos passos ajudado por tanta gente. Dóca é assim, um empolgado homem que retomou a alegria de menino após ter deturpado o seu olhar pela fria De Pression. Um café caridoso nos une, eu e Dóca, perfeita simbiose de personas únicas. É assim há anos, e assim o será. Café, conversas, amizade.
- por Salvador Neto, Portugal, em 14 de abril de 2024