Doroteia e Isabel seguem lado a lado pela estrada poeirenta e esburacada. Vão demorar mais de duas horas para chegar até à escola mais próxima da sua aldeia, Kawewe, no Bié, no coração de Angola.
Como elas, milhares de alunos angolanos de zonas rurais andam dezenas de quilómetros para ter acesso ao ensino devido à falta de transportes.Muitos cedem ao cansaço e à dureza das caminhadas e abandonam a escola logo nos primeiros anos. Outros prosseguem, mas com baixos níveis de aprendizagem e aproveitamento.
“O setor da educação aqui tem desafios significativos”, desabafa José Edgar, administrador comunal da Chicala, uma das comunas desta província angolana que ocupa uma área equivalente a 80% da superfície de Portugal Continental.
Estamos a 52 quilómetros do Cuíto, capital do Bié, uma vasta extensão de planalto onde a população se dedica sobretudo à agricultura familiar e onde o mau estado da estrada implica perder quase duas horas de carro para chegar.
Nesta comuna, os 18 mil habitantes estão distribuídos por 57 aldeias, todas distantes entre si, sem transportes públicos, sem água, sem eletricidade, sem rede de telemóvel nem Internet, e com um número elevado de jovens em idade escolar.
Com o processo de aglutinação das escolas, por falta de salas de aula, e insuficiência de professores, muitas crianças das aldeias circundantes passaram a ter de se deslocar à Chicala para ir às aulas, para descontentamento dos pais, que, muitas vezes, acabam por preferir manter os filhos consigo nas lavras.
“Os pais veem os filhos a sacrificarem-se, têm baixo aproveitamento, apresentaram-nos essa preocupação”, diz o responsável da comuna que conta com dois centros escolares — um secundário e um primário — para atender uma população estudantil de 350 alunos.
Os quatro professores chegam a ter 80 alunos por turma no início do ano letivo, mas muitos vão ficando pelo caminho. Dos mais de 1.800 alunos matriculados no ano letivo de 2023/2024, cerca de 30% deixaram de ir às aulas. É meio da manhã e ouve-se a partir da janela a toada infantil do bê-a-bá recitado pelos alunos da 2.ª classe.
Os materiais pedagógicos são escassos ou inexistentes e os estudantes, mal alimentados, revelam pouca capacidade de concentração. Quem está a dar a aula de português é Frederico Chipessola, que, pacientemente, vai ensinado o alfabeto.
Pede a uma das crianças para ir fazer a leitura no quadro, mas o rapazinho recusa. “Tenho fome”, justifica, tristonho. As crianças acordam cedo e muitos fazem a longa caminhada de barriga vazia.
Um sacrifício que se estende também aos professores, como Alberto Tiago, de 30 anos, que leciona a 3.ª classe e vai e vem de mota, diariamente, do Cuíto para dar aulas na Chicala.
“Saio às 04:30”, diz, acrescentando que por vezes pernoita na casa dos professores disponível na comuna. O seu aluno Manuel Gueve, de 12 anos, acorda quase à mesma hora para chegar à escola, a pé, a partir da aldeia de Candondo.
Os pais e os irmãos trabalham na lavra e, apesar dos cerca de 20 quilómetros que percorre, Manuel diz que quer continuar a vir às aulas “para aprender”, apesar do cansaço.
Prosseguimos pela tormentosa estrada cavada de sulcos abertos pelas chuvas, cruzando-nos com alguns — poucos — “kaleluias”, as motas de três rodas que servem como principal meio de transportes desta população rural e pobre.
Por aqui anda-se sobretudo a pé, homens, crianças e mulheres que carregam os filhos nas costas e as bacias à cabeça, postais africanos onde as privações se escondem atrás de sorrisos.
A paisagem, ora descampada, ora povoada por pequenos núcleos de casas de adobe com telhados de colmo ou de chapa presa com pedras, sucede-se por mais uma hora.
Fizemos cerca de 15 quilómetros para chegar à escola n.º 122 de Chilema, que serve sete aldeias, a mais longínqua das quais — Dumba Kalunjololo – a 26 quilómetros.
Dos 68 alunos da Dumba inscritos inicialmente, restam 18, diz Leonardo Chicomo, o diretor desta escola, que gasta também seis horas por dia no percurso escola-casa, no Cuíto, na sua motorizada.
A sala de aulas está instalada num barracão e transforma-se em local de culto aos domingos. Uma solução que as autoridades locais encontraram para colmatar a insuficiência de salas de aula.
Pouco mais de uma dezena de meninos e meninas aconchegam-se em banquinhos nesta igreja que faz de escola, ouvindo distraídos a aula de matemática dada por Miguel da Costa, 26 anos.
Chegou à aldeia há menos de um ano, depois de quatro anos passados na Chicala e ganha cerca de 150 mil kwanzas mensais (162 euros). “O maior problema é a locomoção”, o que o leva a ficar durante a semana na aldeia onde os professores podem pernoitar, lamenta.
Com uma pontinha de orgulho, diz que foi aprendendo a lidar com as outras dificuldades, o isolamento, a vida sem Internet e sem telemóvel: “eu sou escuteiro, a gente acostuma-se”.
Avançamos para a aldeia de Kawewe, onde muitos dos jovens deixaram de ir à escola. Jacinto Bunga, por exemplo. Tem 16 anos e parou na 5.ª classe. Porquê? “As condições”, responde.
Demorava três horas para ir à escola e mais três para voltar e acabou por se dedicar “ao cultivo”, juntando-se à família. Em época de chuvas, a estrada transforma-se num lamaçal e torna-se intransitável, levando ao abandono escolar.
Ernesto Jamba tem dez filhos e diz que os mais novos não têm como ir até à escola. “É uma hora de marcha”, diz. Verónica Capolo tem nove filhos e também ela critica as distâncias que tornam ainda mais difícil a vida destes estudantes.
“Se fosse mais próximo podiam estudar de manhã e de tarde ir à lavra”, ajudar a mãe no cultivo do milho e feijão que servem de sustento à família. Verónica fala e, aos poucos, crianças e adultos vão vencendo a timidez e começam a apontar a lista de necessidades. “Queremos escola, queremos rede, queremos manivela (água), queremos luz, queremos saúde”, pedem.
Voltamos a encontrar Doroteia e Isabel, já de tarde, na escola da Chicala. As duas jovens de Cawewe têm 16 anos e frequentam a 6.ª e a 7.ª classe. Saíram de casa por volta das 10:00 e vão regressar de noite.
No dia seguinte, tudo se repete, serão mais 50 quilómetros para ter acesso à educação, um direito que é garantido, mas que nem todos conseguem exercer quando têm de escolher entre comer ou aprender.
O cenário poderá mudar em breve com a implementação de um projeto-piloto no âmbito da iniciativa “Unidos pela Educação” – que integra o Centro Ufolo, a Fundação Ulwazi e o Ministério da Educação – para formar professores ambulantes e levar uma “escola móvel” até às aldeias.
O projeto está a ser gizado com as autoridades locais e pretende encontrar soluções logísticas para transportar os professores, estabelecendo parcerias com os mototaxistas locais, e garantir kits pedagóicos e meios audiovisuais, através, por exemplo, de painéis solares portáteis, explica Rafael Marques, do Centro Ufolo.
“A educação tem de ir ao encontro dos alunos”, diz o ativista e jornalista, diretor do site Maka Angola, que espera ter o projeto no terreno já no início do próximo ano letivo.
Fonte: História de Lusa