A série especial sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente – que completa 30 anos nesta segunda-feira (13) – começa a ser publicada hoje pela Coordenadoria Estadual da Infância e Juventude, do Poder Judiciário de Santa Catarina (PJSC). O Palavra Livre vai reproduzir aqui as reportagens, pela alta relevância que tem para uma melhor compreensão por parte da sociedade, do que representa o ECA para a nossa juventude.
As matérias irão responder e aprofundar algumas questões, muitas delas polêmicas e espinhosas: o que estabelece o ECA, em qual contexto ele surge e quais as mudanças práticas que ele provocou? Por que o Estatuto é considerado um avanço civilizatório, mas, ao mesmo tempo, é tão criticado? Afinal, ele funciona? Quais foram as mudanças mais importantes ao longo destas três décadas e o que pensam os profissionais que lidam diariamente com as questões relativas à infância e juventude? A série irá falar ainda dos procedimentos, da estrutura e dos atores envolvidos na rede de proteção à criança e ao adolescente em Santa Catarina. A matéria a seguir conta a história de Nelson Matheus.
A incrível história de Nelson Matheus, o Embaixador da Educação em Santa Catarina
Por Fernando Evangelista / Núcleo de Comunicação Institucional do PJSC
Quando a mãe e o padrasto de Nelson foram embora de casa, ele tinha 12 anos, um irmão de 11, uma irmã de sete meses e apenas R$ 40 na carteira. Embora a ficha ainda não tivesse caído por completo, a partir daquele momento ele teria que cuidar dos irmãos e precisaria encontrar um jeito para que não passassem fome.
Havia outro desafio: escapar dos traficantes locais que cobravam as dívidas acumuladas pela mãe e pelo padrasto, ambos dependentes químicos. O pai de Nelson havia morrido anos antes e tanto a avó materna quanto a paterna não tinham bom relacionamento com os netos – elas demoraram três meses para descobrir que as crianças estavam por conta própria, vivendo numa casinha de madeira, de um quarto, na comunidade Frei Damião, em Palhoça.
Naqueles meses de 2010, Nelson faz o que pode para sobreviver: cata cobre e revende por alguns centavos, pede comida na casa dos vizinhos e quando não tem mais nada no bolso, nem comida na geladeira, acha R$ 50 na rua, no meio do lixo, e compra tudo em sopa. Depois, ele e os irmãos vão para a casa da avó materna, na comunidade Morar Bem, em São José. A primeira pergunta que ela lhes faz dá uma ideia do que iriam enfrentar: “Cadê o dinheiro que a mãe de vocês deixou?”.
Do tempo em que passaram ali, Nelson lembra as cenas cotidianas de violência, com surras e castigos. E, mesmo mudando de bairro, as ameaças dos traficantes continuam. Então Nelson – que estava fora da escola – toma uma decisão improvável: liga para o Conselho Tutelar e pede ajuda. “Acima de tudo, o que eu mais queria, era estudar”, conta.
Ele é encaminhado para uma Casa Lar, serviço de acolhimento provisório para crianças e adolescentes em situação de medida de proteção e em situação de risco pessoal, social e de abandono. Há, no Brasil, 32.980 crianças e adolescentes vivendo nessas instituições – em Santa Catarina são 1.290, conforme o Sistema Nacional de Adoção (SNA). Quando eles completam 18 anos, caso não tenham sido adotados ou não possam voltar para a família de origem, precisam sair e encarar o mundo sozinhos. Neste meio tempo, o irmão de Nelson vai morar na casa da outra avó, por parte de pai, e a irmã pequena tem a sorte de ser adotada.
A expectativa de que a vida seria melhor na Casa Lar não se concretiza. Depois de várias experiências ruins, Nelson pede para ser transferido e é encaminhado para uma nova Casa, “bem melhor do que a primeira”, segundo ele. “Encontrei uma assistente social e uma psicóloga excelentes”, relembra. Mas continua preocupado com o irmão, que não se adaptara na casa da avó. “Ela era bastante violenta com ele”, conta.
Nelson vai estudar na Escola Básica Municipal Vereadora Albertina Krummel Maciel, também em São José, e rapidamente se destaca como excelente aluno. A diretora lhe fala sobre o programa Acelera Brasil, do Instituto Ayrton Senna, e quer saber se ele faria um teste. O programa é direcionado a estudantes do ensino fundamental que, pela idade, deveriam estar em séries mais avançadas e, ao participarem do programa, aprendem o suficiente para saltar até dois anos escolares. Nelson faz e passa.
Nesta escola, ele conhece a professora Maria Teresa Gevaerd. Numa manhã, ela entrega a Nelson uma prova na qual ele havia tirado 10, o único de uma turma de 30 pessoas. Diante da cara de desânimo do aluno, pergunta:
– Por que não ficas feliz, como qualquer um ficaria, com uma nota tão boa?
– Porque não tenho ninguém para mostrar – ele responde de bate-pronto.
Então a professora diz algo que ele nunca esqueceu e que ele costuma repetir nas palestras que profere:
– Nelson, com o estudo, tu vais poder mostrar não só as tuas notas, mas o teu talento para as pessoas. Investe, te dedica porque a educação, a cultura e o conhecimento vão ficar contigo, serão teus aliados e nada, nem ninguém, vai poder tirar isso de ti.
Esta frase, que poderia entrar por um ouvido e sair pelo outro, pegou Nelson de jeito. “Este é o momento de uma reviravolta na minha vida porque é a primeira vez que alguém olha para mim de verdade, se interessa e percebe que eu tenho algum valor”. O esforço diário de ir a pé todos os dias até escola – 4 km para ir, mais 4 km para voltar – começa a fazer sentido. Outra coisa importante que, segundo Nelson, fez com que ele conseguisse organizar as ideias e acalmar o espírito foi a prática sistemática do exercício físico. “Com o Jiu Jitsu, aprendi a importância do autocontrole”, diz.
É neste mesmo ano que Nelson conhece a juíza da Infância e Juventude da comarca de São José, Ana Cristina Borba Alves. Foi ela quem autorizou a troca de Casa e é quem vai acompanhar os passos de Nelson durante todos estes anos.
Num determinado dia, ele aparece no Fórum com o irmão e, ao ser recebido pela magistrada, vai direto assunto:
– Este é meu irmão, ele mora com a avó, mas ele não gosta de lá. Ele precisa de ajuda.
Ana Cristina ouve com atenção a história, dá as orientações necessárias e, sem prometer nada, explica os procedimentos jurídicos e legais a serem seguidos. “Eu senti”, diz Nelson, “que a doutora Ana, assim como a professora Maria Teresa, realmente me ouvia e se preocupava comigo e com o meu irmão”. A partir dali, sempre que recebia o boletim mensal, Nelson ia ao Fórum mostrar para a juíza, que recorda: “Ele ia ao meu gabinete para mostrar o boletim, no qual enfileirava notas 10 de cima até embaixo. Daí eu chamava todo o pessoal do gabinete para mostrar e todos o elogiavam”.
Neste trajeto de mudança, Nelson conhece o Programa Novos Caminhos, iniciativa da Coordenadoria Estadual da Infância e da Juventude (CEIJ) do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, juntamente com a Associação dos Magistrados Catarinenses (AMC) e com a Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (FIESC).
Em linhas gerais, o Novos Caminhos – que hoje envolve ainda outras entidades – oferece a profissionalização e insere no mercado de trabalho adolescentes a partir dos 14 anos, residentes ou egressos dos serviços de acolhimento de Santa Catarina. Aos menores de 14 anos, prevê ações de saúde, bem-estar e formação humanística, com o objetivo de prepará-los para a etapa da profissionalização.
Em quatro anos no Novos Caminhos, Nelson fez diversos cursos, entre eles o Nível Técnico de Eletrotécnica, além de cursos de qualificação e estágios. “Sou grato pelas portas abertas que surgiram a partir deste projeto do Poder Judiciário e da FIESC”. Para se ter uma ideia, apenas em 2019, o Programa atendeu 622 adolescentes e inseriu 183 no mercado de trabalho.
Depois de encontrar Maria Teresa e Ana Cristina, Nelson conheceria Adão de Souza ¿professor de Filosofia – que também faria diferença em sua vida. Adão e seu companheiro Geovani Luiz Frederico adotaram Nelson e o irmão dele há cinco anos.
Hoje, Nelson Matheus Hubner Frederico tem 22 anos e é o Jovem Embaixador da Educação em Santa Catarina, título concedido pelo Programa Novos Caminhos. É estudante de Engenharia Elétrica no Instituto Federal de Santa Catarina, é líder estudantil, é formado em eletrotécnica pelo SENAI e faz estágio numa empresa.
Nelson não titubeia quando alguém pergunta como ele conseguiu superar as dificuldades e driblar as estatísticas trágicas que normalmente acompanham essas histórias. “Tive a sorte de encontrar pessoas incríveis e entendi que a educação poderia mudar a minha vida”, ele diz. Este sentimento é tão forte que ele pretende ser professor para, de algum jeito, retribuir o que tem recebido. Segundo Nelson, se der tudo certo, ele quer ter uma escola e até já escolheu o nome: Escola Maria Teresa Gevaerd.
Outra coisa que ele pretende fazer é continuar contando a sua história para outros jovens, principalmente para aqueles que vivem em abrigos ou que estão em situação de dificuldade. “Se eu consegui, eles também podem. Basta que aproveitem as oportunidades e se dediquem de coração”. Nelson diz que sua trajetória mostra, de forma concreta, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completa 30 anos nesta segunda-feira (13/7), foi fundamental para que ele pudesse mudar de vida, de família e de perspectiva. Nelson diz que sem os direitos e as garantias, sem também os deveres impostos no ECA, a vida dele teria sido totalmente diferente. Ele faz uma pausa e pergunta: “aonde achas que eu estaria sem o ECA?”