Eu precisava encontrar uma xícara elegante. Bonita. Única. Ou, como chamam em Portugal, uma chávena. Minha esposa não parava de falar disso, que era para criar vídeos bacanas, enfim. Mas ir atrás, nada. Resolvi então em belo dia de outono europeu acabar com esta agonia. Era aquele dia ou nunca. Nunca é demais né. Mas queria por um fim a busca da chávena que jamais foi buscada. Sai pelas belas ruas de Alcobaça, cujas pedras ao chão vem todas da bela serra dos Candieiros.
Já tinha entrado em uma pequena loja de antiguidades que ficava no caminho ao Mosteiro de Alcobaça, onde Inês e Pedro tem seus túmulos. Um patrimônio da humanidade de 900 anos. Não sabe quem foi o casal? Vai continuar não sabendo, porque o caso aqui é a chávena única. Em frente à loja ficam, antes mesmo da porta, móveis antigos e tapetes a mostra. Uma vitrine, por aqui uma montra, dá a dimensão do que há em seu interior. Anjos barrocos, candelabros, vasos e… chávenas! Entrei.
Dava até medo de esbarrar em tanta arte e cultura expostas. Prateleiras à esquerda e à direita estreitavam o caminho profundo que seguia rumo ao fundo da loja. Uma peça mais interessante que a outra. Até sopeiras, copos, bandejas. Com olhos focados nas chávenas, mas perdido entre tantas obras de arte, fui mergulhando em meio à história. Já estava quase ao fundo da loja quando uma voz aguda, cheia de esses, me chamou à realidade. – Bom dia, disse aquele senhor de cabelos grisalhos, abrindo um sorriso que te abraçava.
– Como está? Deseja algo? Ao abrir a boca ele já viu que era mais um brazuca curioso. Responde que sim, e que buscava uma chávena bonita, diferente. Expliquei a complexidade do sonho da minha companheira. Ele saiu da pequena toca onde estava sentado em uma cadeira centenária, certeza disso. E me apresentou algumas peças, entre as quais a que eu tinha absoluta convicção, agradaria minha esposa. Era uma porcelana diferenciada, feita por cerâmica local há pelo menos 50 anos. Relíquia.
A partir da minha decisão, iniciamos uma conversa. Seu Barros, sim, este era o nome dele, perdão por ter esquecido de lhes dizer. Seu avô era brasileiro, e ele mesmo já tinha conhecido o Brasil, e atendia muitos brasileiros, e gostava muito do nosso povo, e foi marinheiro a pescar lulas próximo às Malvinas, e etc. Conversador ele. Eu todo ouvidos, jornalista que sou. Já corria uma boa meia hora do português a falar e eu a escutar. Já buscava os euros – salgada a chávena viu – a pagar quando ele continua a desfiar sua história. Reclamar que ninguém mais conversa ou tem atenção ao outro.
Ampliei as antenas auditivas. E seu Barros abre mais seu leque biográfico, uma vida de viajante e dramas. E conta que viveu na guerra colonial na África em nome de Portugal. – Eu vi coisas horríveis com estes meus olhos seu Salvador, disse ele. Mortes, violência, torturas. Enquanto falava, os traumas lhe escorriam transmutados em lágrimas pelos olhos cansados de ver coisa ruim, e não ter a quem contar. Me contive para não trocar lágrimas com o seu Barros. E para permitir a ele o desabafo humano de uma vida dura.
Ele então me convida a um café. Recuso. Tenho compromissos, explico. Faltavam-se cinco euros, os quais seu Barros diz que poderia trazer outro dia. Surpreso insisto que vou a um caixa e volta a pagar. – Não é preciso, venha outra vez para continuar a nossa conversa. Não tenho com quem falar sobre esses fantasmas. Surpreendido por tudo que uma ida à compra de uma chávena me proporcionou, aceitei o compromisso. Seu Barros precisa chorar mais para lavar a alma e voltar a acreditar que sua vida valeu a pena.
Por Salvador Neto