Esse artigo foi escrito pelo padre José Leitão no Jornal de Angola, e reproduzimos aqui diante da proximidade da Rio+20 e nossa responsabilidade com a defesa do meio ambiente, da sustentabilidade como recurso fundamental para a manutenção da vida na Terra. Instigante, desafiador e crítico, o padre fala aos corações. Leia e comente:
“A água potável como elemento importante da soberania alimentar”
A falta de chuva, nestes últimos meses, em Portugal, despertou-nos para a importância vital da água. Agora podemos entrever as dificuldades em que vivem os povos que sofrem secas prolongadas e dificuldades de acesso à água potável de forma habitual. A água é de tal forma essencial para a sobrevivência de todo o ser vivo, que a sua falta motiva migrações, fomes, mortes, guerras e especulações no seu controlo e comercialização. Por isso a ONU declarou, em 2010, que todos têm direito ao acesso à água potável, em quantidade e qualidade suficientes para uma vida digna.
O acesso à água é um factor fundamental na produção de alimentos, vegetais ou animais. A água é o sangue azul da natureza. No entanto, para produzir alimentos utilizamos cerca de 70 por cento da água doce disponível. É preciso, em média, dois mil a cinco mil litros de água para produzir alimentos diários para cada pessoa. A urbanização e o desenvolvimento dos países emergentes estão a aumentar o consumo de carne; ora a produção de 1 quilo de carne de vaca precisa de dez vezes mais água que um quilo de milho. A água, doce e salgada, é também o grande habitat de animais e plantas marinhas. A poluição e a pesca industrial estão a destruir a biodiversidade dos oceanos e dos rios. O tema dos oceanos e da vida na água faz parte da agenda da Conferência da ONU Rio-20, em Junho deste ano, no Rio de Janeiro.
Os investidores começam a olhar para a água como uma “matéria-prima” ou mercadoria de valor acrescentado no futuro, em que vale a pena investir, privatizar e comercializar. Por outro lado, a necessidade de produção de alimentos e de biocombustíveis está a desencadear um processo de aquisição-ocupação de terrenos em África e outros continentes para a agricultura intensiva e industrial.
Esta orientação economicista, em vez de resolver o problema definitivamente, está a agravá-lo: na privatização da água, quando não regulada, dificulta-se o acesso a este bem por parte dos mais pobres; na aquisição de terras de posse ancestral mas não documentada, estão-se a empurrar mais pessoas para as grandes cidades, a promover monoculturas de exportação e o uso não alimentar das terras de cultivo (biocombustíveis e lazer/turismo).
Assim, o acesso à água potável e à alimentação básica fica cada vez mais dificultada para os grupos mais pobres e para os países subdesenvolvidos. O ser humano passa a ser tratado mais como cliente do que como pessoa. Bento XVI na Caritas in Veritate, 27, afirma:
“Os direitos à alimentação e à água revestem um papel importante para a consecução de outros direitos, a começar pelo direito primário à vida. Por isso, é necessário a maturação de uma consciência solidária que considere a alimentação e o acesso à água como direitos universais de todos os seres humanos, sem distinções nem discriminações”.
A Santa Sé tem repetido nos Fórum Mundiais da Água a mensagem da centralidade da pessoa humana e do direito universal do acesso à água, à terra e à segurança alimentar. No último fórum, realizado em Marselha de 12 a 17 deste mês, o Conselho Pontifício para a Justiça e Paz recordou que há que prevenir o futuro devido ao aquecimento global, às alterações climáticas e ao aumento da população, mas também olhar e reparar o presente.
Cerca de metade da população mundial utiliza água de qualidade insegura e não tem saneamento básico. A fome, com a actual crise, tem-se vindo a agravar. O preço dos alimentos tem aumentado. Bento XV já alertava na Caritas in Veritate 27: “falta um sistema de instituições económicas que seja capaz de garantir um acesso regular e adequado, do ponto de vista nutricional, à alimentação e à água e também de enfrentar as carências relacionadas com as necessidades primárias e com a emergência de reais e verdadeiras crises alimentares provocadas por causas naturais ou pela irresponsabilidade política nacional e internacional.”
O VI Fórum Mundial sobre a Água teve como lema “Tempo para agir”. Nesse fórum representantes de governos, empresas privadas e organizações sociais reflectiram sobre formas de solucionar os problemas ligados aos recursos hídricos.
No final, apresentaram algumas soluções assentes em três grandes objectivos: assegurar o bem-estar de todos; contribuir para o desenvolvimento económico e manter o planeta azul. A aplicação e monitorização desses objectivos contribuirão para ajudar a alcançar os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio em 2015. Todos somos co-responsáveis pela saúde do Planeta e dos seus recursos.
O que podemos fazer?
1. Garantir o acesso de todos à água potável e à soberania alimentar. Isto supõe uma boa administração nacional e local, e a cooperação internacional no apoio ao desenvolvimento das regiões e países mais pobres e afectadas pela escassez de água.
2. Educar para a mudança de comportamentos alimentares, higiénicos e industriais, evitando o desperdício de água e de alimentos.
3. Melhorar formas de produção de alimentos utilizando menos água: sistemas de rega mais eficientes, reutilização e reciclagem, colecta e armazenamento das águas das chuvas, tratamento de esgotos e de resíduos líquidos industriais…
4. Diminuir a emissão de gases com efeitos de estufa, baixar a poluição, assegurar o direito à terra, proteger as florestas e aquíferos e promover políticas energéticas que não coloquem em causa o acesso à água e à soberania alimentar.
Deus sonhou um jardim irrigado por um rio de vida (Gn 2,10), um mar povoado de seres marinhos (Gn 1,20) e uma humanidade que cuida da Criação (Gn 2,15). A água e o alimento acessível a todos são sinais messiânicos de que este sonho de Deus continua válido (Is 55,1; Ap 7,16). Somos desafiados a fazer a nossa parte para o bem da humanidade de hoje e em solidariedade com a humanidade do futuro.
(*) Rede Fé e Justiça Europa/África