‘Sociedade cega, surda e muda’, mais que uma simples força de expressão

Uma afirmação que ouvi várias vezes ao fazer a reportagem sobre tráfico de pessoas é que a sociedade é cega, surda e muda em relação a esse crime. Dia desses refletindo a respeito lembrei de uma situação vivida por mim 25 anos atrás. Trabalhava como garçonete em um restaurante brasileiro na cidade de Lyon, no sudeste da França, a 400 quilômetros de Paris. Toda noite as coisas se passavam da mesma forma. Os frequentadores eram casais franceses que falavam baixo ou grupos de poucas pessoas sempre muito contidas. E muito brancas.

Certa vez foi diferente. Próxima da porta eu recepcionei um casal que se destacava dos tradicionais. Ele, loiro, muito loiro, de pele rosa e cabelos ralos. Ela, negra, de uma simplicidade tocante. Muito recatados, responderam ao cumprimento de boa noite desviando o olhar. Ao anotar o pedido ditado pelo marido, ouvi a voz contida da esposa. Ele, francês. Ela, brasileira. O som mal saía da garganta. A moça, muito jovem, me olhou profundamente. Um pedido velado de socorro.

Quando o rapaz se ausentou para ir ao toalete e depois fumar um cigarro, ela sentiu-se à vontade para falar comigo. Contou-me que morava em uma propriedade rural em alguma cidadezinha próxima, mas que raramente saía de casa. “Ele não deixa”, disse, abaixando os olhos. Aquela era a primeira vez em alguns anos que a levara para jantar na cidade.

Estranhamente, ao saber que eu voltaria ao Brasil dali a poucos dias, sacou da bolsa um pacote leve e pediu que eu entregasse aos familiares, que eram de São Paulo, assim como eu. Escreveu em dois papéis. Num deles, o nome e o telefone que eu devia procurar. O outro, escrito rapidamente, pareceu um recado, que eu tive a delicadeza ou a insensibilidade de não ler.

Ao lembrar dessa passagem as palavras ‘Sociedade cega, surda e muda’ fazem mais sentido. O casamento servil é uma das modalidades do tráfico de pessoas. Aquele rebaixar de olhos era um sinal de que a vida ali não era exatamente como aquela moça do Nordeste sonhara ao ser levada de seu país por um estrangeiro cheio de promessas. Ao entregar o pacote a alguém da família não tive o cuidado de falar sobre minha impressão. A pessoa tampouco demonstrou interesse por mais notícias.

O tráfico de pessoas está travestido de diversas formas. Pode estar num cartaz de pessoas desaparecidas e procuradas inocentemente por mães que dificilmente reverão seus filhos, no choro daquelas desesperadas, cujos rebentos foram levados de seus braços antes mesmo de serem amamentados, no olhar aflito de esposas em estado de servidão, nos convites sedutores para modelos, jogadores, dançarinas, cozinheiros, churrasqueiros, na oferta de dinheiro em troca de órgãos, além do aliciamento para a exploração sexual, entre outras crueldades, como tirar proveito da mendicância de outrém.

As denúncias de casos assim surgem de todos os lados. Operários levados de um canto a outro do país com promessas fraudulentas de trabalho, empresas brasileiras que submetem estrangeiros a degradantes condições, explorando a mão de obra com jornadas extensas de 16, 18 horas e alojamentos indignos.

Crianças, adolescentes e mulheres levadas a diversos cantos do mundo para alimentar o mercado da prostituição e a ganância sanguinária das redes organizadas. Criminosos estão livres para aliciar as pessoas com falsas propostas e uso de violência.

Tudo debaixo do nariz da sociedade. Está na hora de sentirmos o cheiro dessa crueldade.

Rede Brasil Atual

 

Perfis: Elpídio e Leontina, 69 anos de amor e união

Elpidio Borba era grande violeiro, e sendo assim, tocava por toda parte. Certo dia saiu para o Terno de Reis na localidade de São João do Itaperiú em Barra Velha. A caminhada com o grupo encerrou ao se deparar com uma bela ruiva que lhe encantou. Seu nome? Leontina Gonçalves. Foi amor à primeira vista. O Terno de Reis perdia um músico e um casal apaixonado se formava a partir daquele encontro. “Eu tinha 16 anos, ele 24. Ele ficou amoitado por ali”, conta dona Leontina, 87 anos comemorados no dia da entrevista (22/6) olhando carinhosamente para seu marido Elpidio, prestes a completar 94 anos em setembro.

Dessa união que chega há quase sete décadas, nasceram 15 filhos, dos quais 11 estão vivos: Juca, Irineu, Mario, Maria, Marli, Nair, Naza, Nice, Josué, Elias e Miriam, a caçula do casal com quem eles moram no bairro Santa Catarina. Dessa família gigante Elpidio e Leontina ganharam 33 netos, 12 bisnetos e até uma tataraneta de três meses que nasceu na Espanha, Annabely, de apenas três meses que eles ainda não conhecem. Como fizeram para criar todos os filhos? “Nós se unia bem (sic). No sítio a gente tinha lavoura, criação de gado, fazia farinha, goma para rosca. Vinha gente de longe buscar farinha e a rosca”, fala orgulhosa do trabalho e da forma com que manteve a família ao lado do esposo. “Ele era muito trabalhador. Não parava”, conta.

Elpidio só ouve a conversa. Está debilitado pela idade, a audição anda fraca. Mas ao ver os violinos que as filhas Miriam e Maria apresentam na mesa ele participa. “Fiz um prá cada filho”, fala sorridente. Leontina e as filhas destacam o trabalho artístico do marido e pai. E ele completou: “Um homem derrubou um sombreiro, aí peguei a madeira, que é boa e forte, e fiz. É mais firme”. A saúde que os preserva bem até hoje eles creditam à alimentação no sítio e ao trabalho, duro. Um ajudava o outro. Leontina costurava, fazia goma e ajudava Elpidio a fazer farinha, muito requisitada pelo sabor e cheiro inconfundíveis. A filha Maria lembra que o pai acordava pelas quatro da manha para trabalhar na produção. “O engenho era movido pelos bois. Eu o acompanhava. Gostava. Tenho saudades daquele tempo”, diz.

Maria, que tem 60 anos, afirma que nunca viu o pai e a mãe brigarem em todos esses anos. Questionada, dona Leontina comenta que o diálogo era presente. “Sempre tem uma discussãozinha né, mas não é nada que não tenha jeito”, explica. Religiosos ligados à Assembleia de Deus há 55 anos, e morando em Joinville desde o final da década de 1960, o casal é aposentado. Ele como agricultor, ela como costureira. Não gostam de sair de casa, somente para ir à casa dos filhos. Um álbum mostra várias fotos, entre as quais das festas de 50 e 60 anos de casamento. As filhas avisam que já pensam na festa dos 70 anos em 2012, as bodas de vinho.

Hoje, 27 de julho, o casal completa 69 anos de um enlace cheio de amor em cada história e gestos de um para o outro. Quando Elpidio fez 60 anos, Leontina fez 60 bolos para a festa. “Eles gostavam muito de bolo. Era tanto que enfeitava a parede da casa. E tinha mais uma vara cheia de rosca, e mais beijú, cuscús”, relembra. A receita dessa longevidade e uniao contém muito trabalho, conversa, diversão, alegria, respeito com um toque final que dona Leontina resume em uma frase. “O amor. Só se vive assim, com amor um do outro né”, ensina sob o olhar do velho amado Elpidio. Que venham as bodas de vinho!

* Publicado na seção Perfil do Jornal Notícias do Dia em julho de 2011