Para se ver livre dos opositores, a ditadura argentina matava-os individualmente, fuzilava-os em massa, amarrava grupos deles e dinamitava-os, metia-os em aviões de pés e mãos atados e atirava-os no mar alto. Ao último destes métodos chamou-se voos da morte e o julgamento dos assassinos começou esta quarta-feira em Buenos Aires, mais de 30 anos depois dos crimes.
O julgamento deverá demorar dois anos, explica o jornal francês Le Monde. No total, entre réus e testemunhas, serão ouvidas mais de 900 pessoas. Acusados são 68 militares da Marinha, o ramo das Forças Armadas que usava os voos da mort” para fazer desaparecer os opositores que sequestrava e torturava nas sua sinistra Escola de Mecânica da Armada, a ESMA — 789 pessoas entre 1976 e 1978.
Diz o Estadão (a edição online do jornal Estado de São Paulo) que o réu que todos querem ouvir é Julio Alberto Poch. Piloto durante a ditadura, fugiu para a Holanda onde se empregou numa companhia aérea e contava aos colegas pormenores das operações em que participou. Foi preso, a pedido do Estado espanhol, e extraditado para a Argentina. Espera-se dele um dos relatos mais completos sobre o que se passava dentro da ESMA e fora dela, dentro dos aviões, no ar, antes de os opositores serem atirados vivos borda fora. Poch terá levado 49 pessoas raptadas e torturadas nos “seus” aviões e o seu relato é essencial porque há pouca documentação oficial ou em primeira mão.
Também há documentos que um antigo agente da ditadura levou consigo quando fugiu do país, e parte dela acabou nos Estados Unidos da América, estando agora de regresso a Buenos Aires para ser usada no julgamento. E há mais provas: os relatos reunidos por uma comissão americana criada pelo então Presidente Jimmy Carter, e que o ditador Jorge Videla (a ditadura durou até 1983, 78-79 foram os anos com maior número de voos da morte) foi forçado a aceitar.
Os comissários instalaram-se na Praça de Maio da capital argentina e, em 1979, reuniram 700 testemunhos sobre desaparecidos, torturas e assassínios; diz o Estadão que havia filas de gente que queria testemunhar e participar crimes à porta do edifício onde estavam os comissários.
As fotografias de 21 vítimas foram fornecidas pelo Uruguai, onde alguns corpos deram à costa, levados pelas correntes do Mar da Prata. O Estadão e oLe Monde mostram algumas nas suas edições online. Os pés e as mãos estão atados com fitas, as pernas estão inchadas porque permaneceram muitos dias na água, há marcas negras — num dos pés, parece ver-se vestígios de verniz nas unhas, mas também podem ser nódoas negras das torturas.
Os jornais não mostram o resto dos corpos, mas falam de rostos onde se vê “expressões de agonia” (Monde), de hematomas, de membros com marcas de choques eléctricos — há relatos noutra documentação referindo que, às vezes, a luz ia abaixo na ESMA porque as descargas eléctricas nos corpos dos presos eram tão violentas; a ESMA não era um prédio, era um complexo de 17 hectares com ruas baptizadas de acordo com o que se passava em cada sector, por exemplo Avenida da Felicidade, Capuz ou Pequeno Capuz (alguns detidos eram encapuzados e privados de luz durante dias).
Relatórios macabros
Cada uma das fotografias uruguaias tem um relatório — há material inédito, nunca revelado — explicando o estado em que o corpo foi encontrado. “Corpo feminino, pele branca, cabelo castanho, 1,60 metros de altura, cerca de 30 anos, morta há 20 ou 25 dias, estatura média. Sinais exteriores de violência: sinais de violação, provavelmente com um objecto pontiagudo, fracturas múltiplas, cotovelo esquerdo destruído, múltiplas fracturas nas pernas com indício de ter sido amarrada. Destruição total do crâneo e do esqueleto maxilofacial.”
Este é o primeiro julgamento dos responsáveis pelos voos da morte. Mas o que se passou na ESMA já fora matéria criminal para um primeiro julgamento e, em Outubro de 2011, o diretor da escola, Alfredo Astiz, foi condenado a prisão perpétua por detenções ilegais, raptos (ao todo desapareceram mais de 30 mil pessoas durante a ditadura argentina), tortura e assassínio. Astiz volta a ser réu no julgamento dos voos da morte.
Os crimes da ditadura argentina têm passado pelos tribunais ao longo dos anos. Em 1985, por exemplo, o ditador Jorge Videla foi condenado a prisão perpétua, mas foi anistiado pelo Presidente Carlos Menem. Voltou aos tribunais em 2001 para nova prisão perpétua.
Outro réu do julgamento dos voos da morte é Jorge Acosta, antigo capitão conhecido por Tigre (a intenção da alcunha é óbvia, tratava os presos com grande ferocidade) e que também vai acumular penas — torturou, assassinou, raptou bebés filhos das mulheres raptadas e desaparecidas, violou as mulheres durante as sessões de tortura.
Adolfo Scilingo é o réu arrependido. Antigo capitão da Marinha, confessou que 4400 pessoas foram assassinadas nos voos da morte. Já fora condenado a 640 anos de prisão por tribunais em Espanha (nos processos abertos pelo juiz Baltazar Garzón) por crimes contra a humanidade e admitiu o que já se sabia mas que, nos processos judiciais, é preciso ter alguém a dizer de forma direta: os voos da morte não eram circunstanciais, faziam parte de um plano para a eliminação, em grande escala, de opositores.
Do Público