Cuba vê renascimento de fés afro-cubanas

No canto, uma estátua da divindade repousa sobre um recipiente de madeira, ladeado por cabaças. No alto, Jesus Cristo e seus apóstolos se sentam à mesa da Santa Ceia.

Tavio é sacerdotisa da santeria, principal religião afro-cubana, mas isso não a impede de também se definir como “100% católica”.

“Somos mais seguidores de Cristo que qualquer outro grupo”, ela diz à BBC Brasil enquanto abana um leque azul.

Tavio e vários de seus filhos espirituais assistiram no domingo à missa em Havana do papa Francisco, louvado por muitos cubanos por seu papel na reconciliação entre Cuba e os Estados Unidos.

Alguns dos pontos brancos na multidão que encheu a Praça da Revolução sinalizavam santeiros recém-iniciados. Pela tradição, quem “faz o santo” (consagração a um orixá) deve se vestir todo de branco por um ano. Outros usavam colares e pulseiras de contas com as cores de seu “orixá de cabeça”, guia espiritual de um santeiro.

Após passar várias décadas nas sombras, a santeria e outras religiões surgidas da mescla entre o Cristianismo e tradições africanas – fenômeno também ocorrido no Brasil – vivem hoje um reflorescimento na ilha. O processo ocorre simultaneamente à reaproximação entre o Estado cubano e a Igreja Católica.

Ateísmo de Estado

Ficaram para trás os dias em que, guiado pelo espírito socialista, o governo de Fidel Castro mudou a Constituição para definir Cuba como um Estado ateu, em 1976.

Na época, conta a católica e sacerdotisa santeira Alina Garcia, de 67 anos, “tínhamos que fazer todos os rituais escondidos.”

Alina Garcia | Foto: João Fellet/BBC BrasilImage copyrightBBC Brasil
Image caption“Tínhamos que fazer todos os rituais escondidos”, diz Alina Garcia sobre perseguição após a Revolução Cubana

Ela diz que a santeria – também conhecida como Regla de Ocha – era vista com desprezo pela classe dirigente e sofria uma espécie de “racismo religioso”, tida como a crença “dos negros, delinquentes, prostitutas”.

Foi naqueles anos, afirma Garcia, que um padre se recusou a abençoá-la porque vestia colares e pulseiras de contas vermelhas e brancas, as cores de Xangô. Nesse dia ela percebeu que nem todos viam o catolicismo e a santeria como faces de uma mesma religião.

Para Garcia, a adoração dos orixás foi um desdobramento natural de sua evolução como católica. Como a maioria dos santeiros, ela só pôde se iniciar na tradição afro-cubana porque já havia sido batizada por um padre e feito a primeira comunhão.

E tal qual no Brasil, em Cuba santos católicos têm correspondentes no mundo dos orixás.

A Virgem da Caridade é Oxum; a Virgem de Regla, Iemanjá; Santa Bárbara, Xangô. As três divindades também são cultuadas no Brasil onde se sincretizaram com outros santos – e foram levadas aos dois países por escravos iorubás, oriundos da atual Nigéria e países vizinhos.

Na santeria praticada por Garcia, todos os rituais começam com um Pai Nosso e a semana de reclusão iniciatória termina com uma visita à igreja.

Abertura e laicização

A sacerdotisa conta que os santeiros começaram a sair à luz conforme o Estado cubano reviu sua postura sobre religiões. Em 1992, mudou-se a Constituição e Cuba se tornou um Estado laico.

As visitas de João Paulo 2°, em 1998, e de Bento 16, em 2012, reforçaram a abertura.

Garcia diz que mais um passo será dado com a passagem de Francisco pelo país. “A vinda dele fortalece a igreja, e precisamos da igreja para expressar nossa fé.”

Segundo ela, a santeria já superou muitos estigmas e hoje tem praticantes entre todos os grupos sociais cubanos. Um exemplo é seu filho, “um engenheiro branco de olhos claros” que se tornou babalaô (adivinho).

Santeira recém-iniciada em Havana, Cuba | Foto: João Fellet/BBC BrasilImage copyrightBBC Brasil
Image captionEstado e Igreja católica se tornaram mais tolerantes com santeiros nos últimos anos, segundo sacerdotisa

A sacerdotisa afirma que a Igreja Católica cubana também se tornou mais tolerante com os santeiros e que nunca mais foi censurada por um padre.

Não há dados oficiais sobre o número de adeptos de religiões afro-cubanas na ilha. Um estudo do Departamento do Estado americano estimou que 80% dos cubanos tenham algum vínculo com as práticas.

Dinheiro e religião

O renascimento das práticas afro-cubanas também se deve às reformas econômicas promovidas em Cuba nos últimos anos, diz à BBC Brasil a socióloga Daymeé Novo.

Novo estudou em seu trabalho de conclusão de curso na Universidade de Havana o impacto da abertura econômica no mercado religioso cubano.

Ela diz que, ao diminuir as restrições à existência de pequenos negócios, as reformas favoreceram o surgimento de lojas de artigos religiosos. Segundo a historiadora, muitos donos dessas lojas são santeiros que passaram a “viver de religião” e a se dedicar integralmente a trabalhos espirituais.

Também graduada em história, a sacerdotisa Rosada Tavio integra o grupo. Em seu apartamento no andar térreo de um edifício de três pisos em Vedado, distrito vizinho a Havana, ela vende itens religiosos e conduz rituais.

Na última quarta-feira, Tavio hospedava um homem e uma mulher panamenhos que foram a Cuba atrás de seus serviços: ele se iniciara no terreiro há alguns anos e dessa vez levou uma amiga, que passaria uma semana em reclusão.

Reafricanização no Brasil

Praticante de santeria em Havana | Foto: João Fellet/BBC BrasilImage copyrightBBC Brasil
Image captionMercado religioso também se abriu com reformas econômicas em Cuba

Estudioso da cultura afro-brasileira, o escritor e historiador carioca Luiz Antonio Simas diz que a religião nacional mais próxima da santeria é a umbanda.

Segundo Simas, que visitou Cuba quatro vezes, a interpretação de que escravos adotaram práticas e santos católicos como um disfarce para continuar cultuando os orixás tem perdido espaço entre os pesquisadores.

Cada vez mais, diz ele, reconhece-se o sincretismo como uma manifestação original de fé. “Existe uma visão deturpada de que o sincretismo embranqueceu religiões negras, mas foi o inverso: ele ‘empreteceu’ o catolicismo”.

Simas diz que a santeria e a umbanda vivem hoje momentos distintos: enquanto a religião afro-cubana se fortalece em Cuba, a brasileira tem sido a mais prejudicada pela acirrada competição com as igrejas neopentecostais.

Paralelamente, afirma Simas, a partir dos anos 90 os terreiros brasileiros passam a viver uma “reafricanização, a busca de uma África imaginada”, que beneficiou linhagens de candomblé tidas como mais puras e livres de influências cristãs.

Antes, diz o historiador, mesmo ícones do candomblé acenavam abertamente ao catolicismo. Ele conta que, indagada certa vez sobre sua religião, a célebre ialorixá (mãe de santo) baiana Mãe Menininha do Gantois (1894-1986) se declarou católica.

Para ela, como para os santeiros, não havia qualquer incoerência.

“Essa contradição que detectamos num exercício de análise intelectual, na prática religiosa ela não existe”, diz Simas.

 

Artigo de Eduardo Guerini no Blog: “Um papado envelhecido. Renúncia profana, escolha divina”

Mais uma vez o professor Eduardo Guerini nos dá a honra de publicar seus textos polêmicos aqui no Palavra Livre. Agora ele se debruça sobre a renúncia do papa Bento XVI, vale a pena conferir, curtir e compartilhar:

No mundo cada vez mais secularizado, a lógica da mística religiosa sempre esteve enclausurada entre muros dos monastérios, ou, do silêncio obsequioso da instituição clerical dominante no mundo ocidental.

Na atualidade,  a Igreja Católica Romana sofreu abalos sísmicos pelas escaramuças reveladas por trás do silêncio obsequioso , assim como, as muralhas  intransponíveis do Vaticano sucumbiram nos sucessivos escândalos  profanados  pela corrupção nos valores propostos na gênese do cristianismo.

A propalada renúncia papal de Bento XVI,  resultada de algo que está muito além do campo  de visão dos  fiéis e cristãos de todo  mundo,  assim como, da  fantasia midiática veiculada exaustivamente em tempo de festa profana na “terra brasilis”.

A escalada de problemas entre o mundo profano e a lógica divinizada da interpretação  do catolicismo, demonstram que , o envelhecimento da mensagem  , a apatia do reinado  (que até então seria vitalício) do papa,  forjado à ferro no Concílio que o  nomeou representante máximo para um  Pontificado  que enfrentaria uma  evasão  crescente  de fiéis,  problemas de abusos  sexuais  em  todas as partes do mundo  – em virtude da ultrapassada ideia celibatária para os  religiosos, sem contar  da  incidência   de problemas políticos de toda a ordem na  “governabilidade”  da Santa Sé, diante do  rumoroso  vazamento de  segredos conhecidos como “Vatileaks”, pelo mordomo sugestivamente  chamado de “Il Corvo”, que  após  denúncias do jornalismo investigativo demonstraram uma rede de corrupção  e lavagem de dinheiro  no interior da Santa Sé.

Se os problemas de ordem interna- velados misteriosamente  diante do silêncio sepulcral dos representantes do Pontificado enrijeceram  a liderança religiosa do cristianismo  no Ocidente, tal é o ritmo frenético das novas configurações relacionais.

A dinâmica das relações extramuros no catolicismo romano aprofundaram o fosso  do atual  líder religioso ,  petrificando  suas contundentes declarações  contra   um mundo  que insistia em contrariar as preces celestiais de nosso representante divino na  atualidade.

No contexto místico-religioso do bento pontificado ,  a mística profana  tomou conta da lógica  no papado envelhecido pela  velocidade dos fatos mundanos.   O papa Bento XVI que sonhara   governar com mãos de ferro,  depreciando  a vida pulsante neste mundo, e,   aspirando um mundo ideal,  deixou escorrer pelas suas mãos todo o poder espiritual no âmbito temporal.

A conciliação filosófica-religiosa encontrou sua base no tomismo – linha oficial que  perde sua eficácia  em velocidade exponencial ,  resultado de um mundo que se afasta  cada vez mais do ideário dogmático do catolicismo apregoado  para o mundo ocidental.

Como diria Erasmo de Roterdã  (1509), nossa imprensa  em sua noticiosa  surpresa adula  e modula sua voz , apresentando todas as virtudes do pontificado de Bento XVI, fazendo  de uma mosca um elefante.  Porém, esquece que nosso bendito homem para  evitar uma  averiguação  aprofundada dos escândalos   que envelheceram seu reinado , segue o famoso provérbio “Não tens que te elogie? Elogia-te a ti mesmo.”

* Eduardo Guerini é  professor de ciência política da Univali desde 2000. Cursou mestrado em gestão de políticas públicas e sociologia política. Atualmente orienta pesquisas nas áreas da Dinâmica Institucional de Políticas Públicas, Criptoeconomia, Sociologia do Crime, Economia Política da Corrupção e Corrupção Institucional. Atento observador da cena política.