Hoje, as milhares de pessoas que têm saído às ruas para protestar contra a corrupção e o governo se unem na grande admiração pelo juiz de Maringá (PR), responsável pelas decisões da Operação Lava Jato na primeira instância. “Somos todos Moro”, dizem cartazes nas manifestações por todo o país. Para uma grande parte da população, Moro, da 13ª Vara Federal do Paraná, é um herói nacional.
Já simpatizantes do governo o acusam de “agir politicamente” e de inflar os ânimos da população de forma “irresponsável”, favorecendo um “golpe” ao revelar o polêmico áudio de uma ligação entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a presidente Dilma Rousseff, exatamente no dia marcado para a posse do ex-presidente como ministro-chefe da Casa Civil.
Segundo investigadores da Lava Jato, a ligação sugere que Lula foi nomeado ministro nesta quinta-feira para ter foro privilegiado e fugir do alcance de Moro. Dilma nega e acusa o juiz de “afrontar direitos e garantias da Presidência”.
“Todas as medidas judiciais e administrativas cabíveis serão adotadas para a reparação da flagrante violação da lei e da Constituição cometida pelo juiz autor do vazamento”, diz nota emitida pelo Palácio do Planalto.
Para Moro, “havia justa causa e autorização legal para a interceptação” e o caso seria comparável ao do presidente americano Richard Nixon, que renunciou em 1974 acusado de obstrução da Justiça.
Lava Jato
Muito antes da disputa aberta com Dilma, Moro foi arrastado ao centro da crise política brasileira por fazer na Lava Jato algo sem precedentes: investigar, prender e condenar um grande número de empresários e políticos poderosos.
Até o ano passado, por exemplo, se alguém dissesse que o presidente da maior empreiteira do Brasil, Marcelo Odebrecht, iria para a cadeia por corrupção, poucos acreditariam (há algumas semanas, ele foi condenado por Moro a mais de 19 anos de prisão).
“Moro é parte de uma geração de juízes e promotores que se formou depois da ditadura e que tem uma visão democrática e republicana bastante consolidada”, opina José Álvaro Moisés, diretor do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da USP.
“Ele desafiou essa lógica até então consolidada no Brasil de que quem tem recursos ou poder consegue escapar do alcance da lei.” Há quem tenha uma visão mais crítica – mesmo entre opositores do governo. Alguns juristas, por exemplo, condenam algumas práticas do juiz na Lava Jato – como os que veem uso abusivo do mecanismo de prisões preventivas.
Mesmo a seção do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil soltou nota de repúdio às escutas de Lula, na qual diz que o procedimento é “típico de estados policiais”.
“É fundamental que o Poder Judiciário, sobretudo no atual cenário de forte acirramento de ânimos, aja estritamente de acordo com a Constituição e não se deixe contaminar por paixões ideológicas”, afirma o comunicado.
Para Renato Perissinotto, cientista político da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Moro parece ter um senso de “missão” muito forte mas, no atual contexto, é natural que desenvolva certa “vaidade”, que queira fazer “história” – e isso influencie seu trabalho. “Apesar de aparentemente ele não ser partidário, sua atuação acaba tendo um caráter político”, diz.
“Ao que tudo indica, essa operação (Lava Jato) vai pegar todo mundo. Vai colocar em xeque o próprio sistema político, que sempre funcionou com base em caixa 2. Mas o problema é que não sabemos o que vai surgir com o colapso do sistema. Pode não ser algo melhor. Podemos ter a ascensão de um líder radical. Enfim, tudo é possível. ”
Tido como sério e reservado – mas com um senso de humor refinado – Moro é filho de um professor de geografia e cresceu em uma família de classe média de Maringá. Ele se formou em Direito em 1995 na Universidade Estadual de Maringá. E em uma palestra para estudantes, recentemente, confessou que até mais da metade do curso se questionava se havia feito a escolha certa.
Mas se havia dúvidas, elas parecem ter durado pouco. Em 1996, com apenas 24 anos, Moro passou em um concurso para se tornar juiz federal. Fez mestrado e doutorado, estudou na escola de direito de Harvard e participou de programas de estudos sobre o combate à lavagem de dinheiro do Departamento de Estado dos EUA.
“Ele é extremamente estudioso e as experiências internacionais parecem ter ajudado muito em sua formação. Cada vez que viaja volta com um monte de livros”, diz Carlos Zucolotto, amigo de Moro e de sua mulher, Rosângela, que chegou a trabalhar em seu escritório de direito trabalhista no Paraná.
Em 2003, com apenas 31 anos, Moro pegou seu primeiro grande caso: o Banestado, que investigou a remessa ilegal de US$ 30 bilhões ao exterior entre 1996 e 2002. Em 2004, participou da Operação Farol da Colina, na qual dezenas de doleiros foram presos. E, em função dessas duas experiências, em 2012 foi convocado pela ministra Rosa Weber para auxiliá-la na investigação do mensalão.
“Ele dava aula na UFPR, que tem muitos acadêmicos de esquerda, e lembro que sua atuação no mensalão causou um certo mal-estar”, diz um jurista do Paraná. Hoje, sites e blogs de esquerda acusam o magistrado de ter ligações com a oposição. Um deles chegou a publicar que sua mulher seria advogada de um político do PSDB – o que ela nega. Outro diz que o pai do juiz teria sido filiado.
“Conheço a família há muitos anos e posso garantir que essas acusações são absurdas e já foram desmentidas”, diz Zucolotto. “Nenhum deles tem ligações com partido algum.”
Um bom ponto de partida para se tentar entender a cabeça de Moro é o artigo que ele publicou em 2004 na Revista Jurídica do Centro de Estudos Judiciários (CEJ) sobre a megaoperação italiana conhecida como Mãos Limpas (Mani Pulite), que precipitou o colapso dos partidos tradicionais desse país e serviu de inspiração para a Lava Jato.
Lá, ele defende práticas e princípios que, mais tarde, gerariam alguma polêmica também no Brasil, como o uso das delações premiadas e das prisões preventivas para se avançar nas investigações, os vazamentos à imprensa e a importância de uma opinião pública engajada para o sucesso da operação.
“Sobre a delação premiada, não se está traindo a pátria ou alguma espécie de ‘resistência francesa'”, escreveu o juiz em 2004.
“Um criminoso que confessa um crime e revela a participação de outros, embora movido por interesses próprios, colabora com a Justiça e com a aplicação das leis de um país.”
Para um jurista crítico, que frequentou a UFPR quando Moro era professor, “ele sabe que para conseguir as informações necessárias para avançar rapidamente nas investigações precisa agir ali no fio da navalha, no limite da legalidade, sempre justificando suas escolhas”. Sobre os vazamentos à imprensa, por exemplo, o juiz defendeu o seguinte no artigo da CEJ:
“A publicidade conferida às investigações teve o efeito salutar de alertar os investigados em potencial sobre o aumento da massa de informações nas mãos dos magistrados, favorecendo novas confissões e colaborações. Mais importante: garantiu o apoio da opinião pública às ações judiciais, impedindo que as figuras públicas investigadas obstruíssem o trabalho dos magistrados, o que, como visto, de fato foi tentado.”
No texto, Moro estava se referindo à Operação Mãos Limpas. Mas não é difícil ver como as suas justificativas para os vazamentos das ligações de Lula cabem hoje nesse mesmo raciocínio.
*Colaborou Camilla Costa, da BBC Brasil em Londres