Depois de receber milhares de provocações, a Procuradoria-Geral da República (PGR) resolveu investigar a conduta do deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ) por declarações feitas no Plenário da Câmara, no último domingo (17), em que reverenciou uma figura central da ditadura militar.
No anúncio de seu voto a favor da continuidade do impeachment da presidente Dilma Rousseff, Bolsonaro exaltou o coronel Carlos Brilhante Ustra, um dos mais notórios torturadores dos anos de chumbo, falecido no ano passado, e disse que ele era “o pavor” da petista – uma referência não explicitada ao fato de que Ustra foi um dos torturadores da presidente.
“[Esquerdistas] Perderam em 64. Perderam agora, em 2016. Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve [sic]. Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff. Pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, por um Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, meu voto é sim”, discursou Bolsonaro, em meio a vais e aplausos, depois de elogiar o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), pela condução dos trabalhos na sessão do impeachment.
A decisão da PGR é uma reação às 17,8 mil reclamações de cidadãos, formalizadas até esta quarta-feira (20), com críticas ao modo com que Bolsonaro se comportou durante a votação do impeachment na Câmara, aprovada por 367 votos a 137 em tensa sessão de quase oito horas de discussões.
As demandas foram encaminhadas à PGR por remetentes de todo o país, por meio de um serviço eletrônico que permite a todo cidadão denunciar qualquer crise ao Ministério Público Federal (MPF).
Além das reclamações no canal do cidadão, diversas entidades se manifestaram em protesto às palavras de Bolsonaro. O Instituto Vladimir Herzog, por exemplo, afirmou que o deputado não pode continuar a fazer apologia do crime de tortura impunemente.
A entidade dá nome ao jornalista que, encontrado enforcado em uma cela em outubro de 1975, foi diretor de jornalismo na TV Cultura e encabeçava a luta contra o militarismo como integrante do Partido Comunista Brasileiro.
Por sua vez, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF) e à Corte Interamericana de Direitos Humanos, na Costa Rica, para pedir a cassação do mandato de Bolsonaro. Segundo o presidente da OAB/RJ, Felipe Santa Cruz, há limites para a imunidade parlamentar e trata-se de um caso de discurso de ódio.
Em outras frentes, a bancada do Psol na Câmara também apresentará denúncia ao Ministério Público Federal contra o deputado. Na internet, foi criada uma petição virtual na plataforma Avaaz para pedir a cassação do deputado. A manifestação online já conta com quase 135 mil apoiadores.
Como goza de foro privilegiado, por ser deputado federal, e só pode ser investigado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o procedimento investigatório aberto na PGR será conduzido pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot.
Histórico
Bolsonaro causar polêmica devido a declarações públicas não é novidade – conduta vista por muitos como pura estratégia para se manter no noticiário e conquistar uma determinada fatia do eleitorado. O comportamento do deputado dá margem a diversos processos por quebra de decoro parlamentar no Congresso, com desdobramentos na Justiça comum.
Recentemente, ele foi condenado a pagar R$ 150 mil, por danos morais, ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (FDD, que garante reparação a direitos coletivos), do Ministério da Justiça. A ação judicial foi resultado, entre outras questões, de declarações do parlamentar sobre homossexuais feitas em março de 2011 e veiculadas no programa CQC, da TV Bandeirantes. Bolsonaro recorreu da decisão.
No caso em questão, referente a 2011, o deputado Jean Wyllys (Psol-RJ), que é homossexual assumido, ajuizou ação no Conselho de Ética da Câmara (veja aqui o vídeo que resultou na condenação em primeira instância). A iniciativa de Jean foi arquivada, assim como todas as demais em âmbito parlamentar.
Em outro episódio, foi a vez de outra desafeta de Bolsonaro, a ex-ministra de Direitos Humanos e atualmente deputada Maria do Rosário (PT-RS), virar alvo de Bolsonaro.
Em 9 de dezembro de 2014, a petista havia ido à tribuna do plenário para discursar sobre o Dia Internacional dos Direitos Humanos e à divulgação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, ambos naquela semana. Maria do Rosário condenou a ditadura militar – “vergonha absoluta” na história brasileira – e criticou os manifestantes que pedem o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e defendem a intervenção militar no país, como Bolsonaro.
Ato contínuo, Bolsonaro ocupou a tribuna e atacou a deputada gaúcha – que deixou o plenário ao ver que o adversário discursaria – de maneira veemente.
“Não saia, não, Maria do Rosário, fique aí. Fique aí, Maria do Rosário. Há poucos dias você me chamou de estuprador no Salão Verde e eu falei que eu não a estuprava porque você não merece. Fique aqui para ouvir”, disparou o deputado.
As declarações do deputado resultaram em investigação na Procuradoria-Geral da República e processos por quebra de decoro movido por quatro partidos e pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos.
Algoz
Ustra foi um dos personagens emblemáticos da repressão durante o regime militar. Apontado pelo Ministério Público Federal como torturador do Doi-Codi do 2º Exército nos anos 70, o coronel comandou o órgão entre 1970 e 1974.
O Dossiê Ditadura, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, relaciona Brilhante Ustra com 60 casos de mortes e desaparecimentos em São Paulo.
A Arquidiocese de São Paulo, por meio do projeto Brasil Nunca Mais, também denunciou mais de 500 casos de tortura cometidos dentro das dependências do DOI-Codi no período em que Ustra era o comandante.
Nos porões da ditadura, Ustra era conhecido pelo codinome “Dr. Tibiriçá”. Formalmente reconhecido como um dos mais cruéis agentes do regime militar, o coronel foi o primeiro militar brasileiro declarado torturador pela Justiça.
Com informações do Congresso em Foco