Copa do Mundo 2014, vendedores ambulantes e zonas de exclusão

Durante as Olimpíadas de 1988 em Seul, os vendedores ambulantes foram removidos das ruas principais e colocados atrás de paredes e becos, como parte do processo de higienização da cidade. Nas Olimpíadas de 1992 em Barcelona, o comércio de rua foi completamente proibido.

Na África do Sul, o estatuto da Fifa vetou o comércio informal perto de edifícios públicos, igrejas, caixas eletrônicos e das áreas oficiais de exclusão da Fifa – ou “áreas de restrição comercial” como preferem chamar – que, diferentemente do que se pensa, não se restringe apenas ao entorno dos estádios mas também aos locais de eventos oficiais da Fifa (que incluem as fan parks, grandes festas de torcedores geralmente montadas nos centros das cidades ou em praias), centros de credenciamento, áreas oficiais de treinamento, hotéis onde as delegações dos países e as equipes da Fifa estão hospedadas, dentre outros.

Na África, qualquer comércio não autorizado era proibido em um raio de 100 metros destes locais (2 km no caso dos estádios). Também foi expressamente proibido o uso de uma lista interminável de termos relacionados à Copa, Fifa e futebol, como a Pública mostrou no documentário Trade Mark 2010, do jornalista Rudi Boon.

No Brasil os camelôs fazem parte da cultura. Não dá para imaginar São Paulo sem a 25 de Março ou Salvador sem as incontáveis barraquinhas de pulseirinhas, acarajés e artigos importados. Cada cidade tem sua feira típica, sua concentração de barraquinhas famosa. Tem até aquela música do João Bosco: “Veio o camelô vender anel/Cordão, perfume barato/ Baiana vai fazer pastel/E um bom churrasco de gato”. Mas o comércio informal não faz parte dos planos do país para o megaevento.

A Lei Geral da Copa, aprovada na Câmara dos Deputados no dia 28 de março e que espera aprovação no Senado, diz no artigo 11 que: “A União colaborará com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios que sediarão os Eventos e com as demais autoridades competentes para assegurar à Fifa e às pessoas por ela indicadas a autorização para, com exclusividade, divulgar suas marcas, distribuir, vender, dar publicidade ou realizar propaganda de produtos e serviços, bem como outras atividades promocionais ou de comércio de rua, nos locais oficiais de competição, nas suas imediações e principais vias de acesso”.

Diz ainda que “os limites das áreas de exclusividade relacionadas aos locais oficiais de competição serão tempestivamente estabelecidos pela autoridade competente, considerados os requerimentos da Fifa ou de terceiros por ela indicados, atendidos os requisitos desta Lei e observado o perímetro máximo de 2 Km (dois quilômetros) ao redor dos referidos locais oficiais de competição”.

Isso significa que a Fifa deve negociar estas áreas diretamente com os municípios. A Pública entrou em contato com as prefeituras das 12 cidades que sediarão a Copa, mas ainda não há nada acertado em nenhuma delas. Por e-mail, a assessoria de imprensa da Fifa confirmou que as zonas de restrição comercial se estendem a hotéis, centros de mídia, etc. e o que mais entender como perímetro de segurança.

Mas garante que o comércio regular dentro desses perímetros “poderão trabalhar com as marcas que já trabalham se não estiverem visando o evento ou seus espectadores” – algo bem difícil de comprovar. Também explica que “não vai comentar sobre o projeto de lei 2014, por ser um processo em curso”.

Para Érick Omena, pesquisador do Observatório das Metrópoles, há uma falta de clareza na lei e em todo o processo que envolve a Copa no Brasil. Ele acredita que este “pacote” de decisões delegado aos municípios é um cheque em branco, pois transfere poder aos seus governantes: “Eles ganham poder de barganha com a Fifa e com os comerciantes. Uma simples decisão como esta desencadeia vários processos. O modus operandi da política municipal é muito voltada para o clientelismo e fatalmente estas decisões vão passar por isso”.

Érick também avalia dois problemas potenciais nas zonas de exclusão: “O primeiro é o da soberania nacional sobre o território. Está sendo delegado o controle territorial à entidades privadas e isso é muito grave. A Fifa e suas empresas parceiras vão assumir o poder sobre trechos do território brasileiro, inclusive criando tribunais especiais para julgar os delitos criados por uma legislação de exceção. O segundo é o da exclusão dos comerciantes que não poderão vender nada relacionado à Copa. Quanto aos ambulantes nem se fala, já existe uma cultura de repressão a eles há décadas. Certamente isso vai ser agudo no período da Copa do Mundo”.

A StreetNet internacional – aliança de organizações de vendedores informais de diversos países, fundada em 2002 na África do Sul, realizou uma pesquisa preliminar em dez das 12 cidades que sediarão os jogos da Copa de 2014 para avaliar o impacto potencial sobre os ambulantes. Além de levantamento de dados, foram feitas diversas entrevistas com lideranças de vendedores informais, representantes do movimento sindical, de movimentos sociais e de organizações não-governamentais reunidos no documento “Copa do Mundo para Todos – O retrato dos vendedores ambulantes nas cidades-sede da Copa do Mundo de 2014”, que a Pública apresenta aqui em primeira mão.

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O objetivo da Streetnet é contribuir para a mobilização e organização dos vendedores informais para o estabelecimento de redes municipais e de fóruns de negociação nas cidades-sede dos jogos. O estudo traz um panorama da situação atual dos vendedores ambulantes no Brasil, mostrando quem são, o que querem e como serão afetados pelo megaevento de 2014.

Enquanto muitos nem sabem da existência das zonas de exclusão, outros já se articulam e até se reuniram em um Fórum convocado pela StreetNet no fim do ano passado para se articular. Do encontro saiu uma nota de repúdio com o título: “Outra Copa do Mundo é possivel: Respeitando os direitos dos (as) vendedores (as) informais”. Entrevistada, uma liderança carioca disse: “Copa não é para pobre porque a população não vai ganhar com o evento e certamente o ambulante vai sofrer muito, como ocorrido nos jogos Pan-americanos”.

O relatório da Streetnet ressalta que “nas cidades estudadas, desde o início de 2011, diversas prefeituras têm revogado unilateralmente as permissões de comerciantes de rua, principalmente dentro desses perímetros que tendem a ser espaços cedidos à FIFA durante a Copa”.

E mostra também que há falhas e falta de articulação entre as leis municipais e federais que emitem licenças aos trabalhadores informais e que na grande maioria das cidades a solução encontrada pelo poder público é o de realocar os vendedores para shoppings populares longe dos centros e das vistas do público.

Especificamente sobre os preparativos para a Copa, o documento diz que “as cidades que hospedarão jogos da Copa do Mundo vêm passando por um processo de gentrificação, fortemente relacionado à produção da assepsia urbana, como forma de adequação das cidades ao megaevento e sua formatação como Cidades Globais” e aponta que a falta de informação sobre o megaevento é tão grande que muitos ainda vêem com otimismo a chegada dos jogos à cidade, sem sequer ter ouvido falar em zona de exclusão.

Nora Wintour, coordenadora de campanha da StreetNet que acompanhou a Copa na África do Sul, diz que a falta de informação é característica dos eventos da Fifa: “Acredito que ao menos 100 mil ambulantes foram afetados pelas zonas de exclusão e fan parks. Mas somente na metade de 2009 (menos de um ano antes da Copa da África do Sul, portanto) os ambulantes ficaram sabendo do que iria acontecer. Por isso não houve tanta mobilização”. Ela conta que com as campanhas de divulgação, incluindo a da própria StreetNet e temendo a má publicidade, a Fifa disse que habilitaria vendedores ambulantes para atividades oficiais especiais: “Nunca vimos isso acontecer”.

Do Observatório Social